A política urbana no Brasil é regida, primariamente, pelo Estatuto da Cidade, lei federal já detalhadamente abordada em outra publicação do blog, regulamentou o artigo 182 da Constituição Federal e se destina a nortear o desenvolvimento das cidades a partir de instrumentos de regularização fundiária e de democratização da gestão a ser implementada localmente pelos Municípios.

No âmbito municipal, por sua vez, é o Plano Diretor, também já analisado em trabalho anterior, que define aspectos específicos da política urbana de uma determinada localidade, determinando as regras de uso e ocupação do solo.

De fato, não é difícil intuir que, sem um regramento específico, os territórios das cidades seriam utilizados de maneira desordenada, com distorções que afetariam profundamente o meio ambiente, a vida das populações e o mercado imobiliário. Por falar em distorções, vale conferir o nosso conteúdo sobre gentrificação. Você já ouviu falar a respeito?

E sobre solo criado? Você sabe o que significa essa expressão?

É disso que trataremos nesse texto, apresentando as interseções que existem entre o tema e a tributação.

Solo criado: origem e conceito

A necessidade de estabelecer diretrizes para a utilização do solo urbano, inclusive no que se refere à possibilidade e limites para a construção de edificações, deu origem ao instituto do solo criado, que se fundamenta na compra de potencial construtivo.

Define-se solo criado como “um acréscimo ao direito de construir além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela lei; acima desse coeficiente, portanto, até o limite que as normas (…) admitirem, o proprietário não terá o direito originário de construir, mas poderá adquiri-lo do Município, conforme as condições gerais que a lei local dispuser para a respectiva zona[1]”.

Aponta-se que esse conceito surgiu em nosso país na década de 1970, a partir de trabalhos desenvolvidos pela Prefeitura de São Paulo, sendo posteriormente incorporado pelo Estatuto da Cidade por meio das figuras da Outorga Onerosa do Direito de Construir (ODC) e da Transferência do Direito de Construir (TDC), das quais tratamos no já citado conteúdo sobre o Plano Diretor e também em artigo específico sobre o Plano Diretor de Belo Horizonte.

Em linhas gerais, solo criado pode ser definido como toda a área edificável além do chamado coeficiente único de aproveitamento do lote, adquirida do próprio Município (no caso da ODC) ou de um particular (no caso da TDC).

Operações com solo criado podem ocorrer quando um determinado imóvel é, nos termos da lei municipal, considerado necessário (i) para fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários; (ii) para preservação (por interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural); ou (iii) para servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social.

Vamos a um exemplo básico apenas para ilustrar uma das dimensões do instituto do solo criado: suponha que a Prefeitura de sua cidade decida tombar um casarão histórico pertencente à sua família que se vê, assim, impedida de utilizar aquele bem para fins comerciais (vender o imóvel ou utilizá-lo em operação de permuta). Diante disso, a sua família recebe, via ODC, o direito de utilizar, em outro local, o potencial construtivo do qual vocês deixaram de poder usufruir em razão do tombamento.

Nesse outro local, além do coeficiente normal de aproveitamento do terreno, ou seja, da área máxima que poderá ser construída ali, a sua família poderá utilizar, observadas as regras específicas e os limites máximos previstos na legislação, o potencial construtivo adicional recebido em virtude do tombamento.

A rigor, um mesmo imóvel possui três coeficientes de aproveitamento: o mínimo, o básico e o máximo.

O mínimo, como o próprio nome indica, estabelece a área mínima daquele imóvel que deve ser aproveitada, seja por meio de edificação, seja por meio do exercício de alguma atividade, para fins de cumprimento da função social da propriedade. Um aproveitamento construtivo abaixo do mínimo pode ensejar, a critério do Município, a aplicação dos instrumentos de parcelamento, edificação ou uso compulsórios.

Já o coeficiente de aproveitamento básico é aquele indissociável do terreno, representando o direito fundamental do proprietário de construir no local.

Logo, em circunstâncias normais, um proprietário tem a obrigação de aproveitar um terreno em seu coeficiente mínimo de aproveitamento e, ao mesmo tempo, tem o direito de aproveitar o potencial construtivo básico daquele terreno sem pagar nada a mais por isso.

Por fim, o coeficiente máximo define o limite acima do qual não se pode exercer nenhum aproveitamento construtivo no imóvel, sob pena de aplicação de sanções pelo Município, tais como multa, demolição, suspensão de atividade, suspensão de novo licenciamento, dentre outras.

Portanto, para construir acima do coeficiente básico e até o limite do coeficiente máximo, um proprietário pode:

  • adquirir onerosamente esse direito junto ao Município, via ODC; ou
  • adquirir de terceiros, também de forma onerosa, unidades de Transferência do Direito de Construir, as chamadas UTDCs.

E onde entra a tributação nessa história?

Tributação sobre o solo criado: seria a ODC um tributo?

A incidência de tributos sobre o solo criado é objeto de discussões históricas, como aquela travada no julgamento do Recurso Extraordinário 387.047-5 pelo Supremo Tribunal Federal, quando o então Ministro Eros Grau, ao analisar lei do Município de Florianópolis, reconheceu a constitucionalidade da outorga onerosa do direito de construir e considerou que o instituto é um ônus, e não um tributo, como alegado pela construtora autora da ação em questão.

Na doutrina, porém, há quem ainda defenda a natureza de tributo da ODC[2], embora, a partir do citado precedente do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e as Justiças Estaduais tenham se consolidado no sentido de que tal instituto é mera ferramenta de política urbana, sem os caracteres que permitiriam caracterizá-la como tributo (que, nos termos do Código Tributário Nacional, é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”).

Incidência do Imposto sobre a Renda na negociação de solo criado

Como se viu, o potencial construtivo de um imóvel pode ser transferido a terceiros, interessados em aumentar o coeficiente de aproveitamento de determinado(s) terreno(s), por meio das UTDCs.

Ora, e se quem transfere essas UTDCs aufere um ganho financeiro na operação? Esse ganho é tributável? Como, a princípio, haverá uma relativa escassez dessas unidades no mercado, não se estará diante de uma importante “riqueza nova” a autorizar a tributação?

De fato, não surpreende que a Receita Federal tenha se posicionado sobre o tema, entendendo pela incidência do Imposto sobre a Renda nesse tipo de operação, como se vê na Solução de Consulta COSIT nº 176/2021:

GANHO DE CAPITAL. UNIDADES DE TRANSFERÊNCIA DE DIREITO DE CONSTRUIR.

As limitações à edificação em propriedade urbana especificadas no Estatuto das Cidades possuem fundamento constitucional, sob o parâmetro da função social da propriedade.

A autorização para transferência do potencial de edificação de um determinado imóvel a outro, na forma autorizada pela legislação municipal, compreende a finalidade de repartição isonômica das restrições impostas pela municipalidade a determinados imóveis, sob a ótica da função social, não se confundindo com hipótese de indenização.

Sob a perspectiva tributária federal, a alienação de Unidades de Transferência de Direito de Construir, representativas de potencial de edificação, cuja transmissibilidade a outros imóveis seja declarada por determinado município, possui caráter de transmissão de direitos, passível de apuração de Ganho de Capital, segundo as regras preconizadas na legislação incidente.

Na mesma Solução de Consulta, que é representativa do entendimento geral do Fisco federal sobre o tema, reconhece-se que “a legislação do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física não confere autorização para atribuição de custo específico, na apuração de ganho de capital sobre a alienação de Unidades Transmissão de Direito de Construir, quando a titularidade do alienante decorra da mera outorga originária de transmissibilidade do potencial construtivo básico”.

Ou seja, na visão da Receita Federal, o proprietário que recebeu unidades de direito de construir sem pagar nada por isso (como no exemplo do casarão tombado) não pode atribuir um custo a essa “aquisição” para o efeito de reduzir o ganho de capital (e a respectiva carga tributária) em posterior operação de transferência desse direito.

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Conclusão

Já se tem notícias de Municípios, como Porto Alegre, que passaram a aceitar, além do pagamento em dinheiro, também imóveis, bens ou permuta de área construída como forma de contrapartida referente à aquisição de solo criado.

Com efeito, trata-se de uma forma de incentivar transações que podem representar receitas novas para a municipalidade, ao mesmo tempo em que ela, além de arrecadar, consegue implementar os parâmetros urbanísticos que deseja a partir desse instituto.

Os usos criativos desse importante mecanismo para a implementação de políticas urbanas e o incremento da legislação sobre ele certamente virá acompanhado dos esforços do Fisco de verificar a geração de renda tributável, de modo que os contribuintes precisam estar atentos diante de possíveis abusos.

Você já recebeu unidades do direito de construir em alguma ocasião ou já participou de uma transação entre particulares envolvendo UTDCs? Se sim, como lidou com a tributação?

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Referências

[1] EBHART, Caio Márcio. Solo Criado. Disponível em: <http://infoecidade.blogspot.com.br/2011/03/estatuto-da-cidade-e-o-solo- criado.html>. Acesso em: 10 dez 2015.

[2] FILHO, José dos Santos Carvalho. Comentários ao Estatuto das Cidades – 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

PIERIN, David. Solo criado? Não no meu quintal! In: https://caosplanejado.com/solo-criado-nao-no-meu-quintal/ Acesso em: 18/02/2022

E-book Plano Diretor de BH. Entenda os principais pontos. Agosto, 2020. In: https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/politica-urbana/2020/e-book_instrumentos_versao-completa.pdf Acesso em: 18/02/2022

RONCATO, Janete Teresinha. O Solo Criado em Contextos de Densificação Urbana. Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UFTPR. Curitiba/PR. 2015

CARDOSO, Maurício. Não há incidência tributária sobre o solo criado, diz Eros Grau. In:  https://www.conjur.com.br/2006-ago-11/nao_tributacao_solo_criado_eros_grau?imprimir=1 Acesso em: 18/02/2022

ALOCHIO, Luis Henrique Antunes. Do solo criado (outorga onerosa do direito de construir): instrumento de tributação para a ordenação do ambiente urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

FILHO, José dos Santos Carvalho. Comentários ao Estatuto das Cidades – 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito Urbanístico e Ambiental. 2. ed. rev. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

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