É possível que você tenha estudado sobre a gentrificação nos tempos de colégio ou, a depender de sua formação acadêmica, que tenha se debruçado sobre esse fenômeno na faculdade.

Seja como for, é altamente provável que você já conheça alguns dos exemplos que apresentaremos a seguir. Se você mora em um centro urbano, então, especialmente em uma grande cidade, dá para arriscar que a gentrificação está presente no seu cotidiano, mesmo que você ainda não tenha consciência disso.

Como?

Bom, sabe aquele bairro tradicional, bem localizado, mas que foi ficando decadente ao longo do tempo e passou a ser habitado por populações de baixa renda? Talvez seja até um bairro histórico, com imóveis de uma arquitetura clássica, típica de uma época já distante.

Pois é. Se, aos poucos, esse local desvalorizado foi tendo a sua estrutura revigorada, com a construção de novos imóveis, melhorias em iluminação pública, transporte, acesso e outros incrementos, ocorreu, ali, um processo de gentrificação.

Não iremos, neste texto, dar nenhum veredito sobre a gentrificação, definindo se ela é algo bom ou ruim do ponto de vista social e político. O que te convidamos a fazer é refletir conosco sobre a maneira pela qual a gentrificação e o direito tributário se conectam, no que passaremos, ainda, pelo conceito de retrofit, que surgiu na Europa e vem ganhando corpo nos Estados Unidos e também em terras brasileiras.

Venha conosco!

Exemplos de gentrificação

Alguns exemplos notórios de gentrificação são as transformações pelas quais a cidade de Barcelona, na Espanha, passou para receber os Jogos Olímpicos em 1992, algo replicado, de certa forma, no Rio de Janeiro, na preparação para os Jogos Olímpicos de 2016.

Por falar em Rio de Janeiro, além da reestruturação da Zona Portuária da cidade, aponta-se a favela do Vidigal, na zona sul carioca, como outro exemplo de gentrificação, sendo bem evidente, nos últimos anos, que a característica marcante da localidade, com barracos simples amontoados sobre o morro, vem sendo modificada pela presença crescente de casas e estabelecimentos comerciais de mais alto padrão, possuídos e frequentados por pessoas com maior poder aquisitivo, que querem aproveitar a vista privilegiada que se tem dali. Aliás, há quem se refira ao Vidigal como a favela ou o morro “dos artistas”.

Ainda no Brasil, a gentrificação é claramente identificada também em São Paulo, na região de Itaquera, zona leste, onde foi construído, para a abertura da Copa do Mundo de 2014, o estádio de futebol hoje utilizado pelo Corinthians, e também no bairro Vila Madalena, no distrito de Santa Cecília e no chamado Centro Novo, no distrito da República.

No centro de Recife, a utilização da área do Cais José Estelita gera polêmicas desde 2012, quando foi iniciado o projeto Novo Recife, com a substituição de antigos galpões, estações ferroviárias e a segunda linha de trem mais velha do país por gigantescas torres de imóveis residenciais de luxo.

Belo Horizonte também tem seus exemplos do fenômeno gentrificação, como ilustram as situações dos bairros Anchieta e Santa Tereza, este o reduto do Clube da Esquina e da boemia da capital mineira.

Buenos Aires (Puerto Madero), Londres (East End), Berlim (Friedrichshain), Madri (Malasaña), Nova Iorque (Williamsburg, no Brooklyn) e San Francisco (aqui em razão da instalação de empresas de tecnologia no famoso Vale do Silício, berço de inúmeras startups e badalados espaços de coworking) também vivenciaram e ainda vivenciam, intensamente, o fenômeno da gentrificação.

Origem do termo gentrificação

Gentry, que deriva de genterie, do francês arcaico, foi a palavra consagrada pela língua inglesa para nomear a classe social europeia que, embora desprovida de títulos oficiais de nobreza, era proprietária de terras, vivia de renda e não trabalhava.

A apropriação do termo na contemporaneidade decorreu de estudos da socióloga Ruth Glass, que observou um movimento da classe média de Londres, na década de 1960, pelo qual bairros tradicionalmente operários foram sendo “invadidos” por pessoas que possuíam mais dinheiro, resultando em um enobrecimento e elitização que culminaram com o aumento dos preços imobiliários e com a consequente “expulsão” dos antigos moradores daquelas localidades.

Daí nasceu a palavra gentrification, que, aportuguesada, resultou no termo gentrificação.

O Estatuto da Cidade e as operações urbanas consorciadas

Em oportunidades anteriores, tratamos, aqui no blog, do Estatuto da Cidade e das chamadas operações urbanas consorciadas.

Grosso modo, uma operação urbana consorciada (OUC), conforme definido no § 1º do artigo 32 do Estatuto da Cidade, é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental de uma determinada área.

A esta altura, após entender o que é gentrificação, você já deve ter enxergado a relação entre tal fenômeno e o instituto da OUC, certo?

De fato, pode-se afirmar que as consequências de um processo de gentrificação coincidem, ao menos parcialmente, com os elementos que o Estatuto da Cidade consolida sob o conceito de OUC, sendo certo que esta é normalmente desenvolvida em áreas degradadas ou com urbanização não condizente com os objetivos gerais do Plano Diretor de um Município.

Em outras palavras, se a gentrificação pode ser o resultado natural das dinâmicas do mercado imobiliário, ela também pode decorrer da utilização de uma OUC destinada a, por exemplo:

  • implantar projetos de qualificação estruturante, como um anel rodoviário ou um grande estádio de futebol (caso de Itaquera, em São Paulo);
  • redirecionar a forma de ocupação de um bairro, incentivando uma maior atividade comercial ou um segmento específico, como o turístico (caso de Puerto Madero, em Buenos Aires);
  • preservar um patrimônio histórico e cultural (o que tentou-se fazer no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte); ou
  • regularizar assentamentos urbanos precários (como em relação à Zona Portuária do Rio de Janeiro).
  • Retrofit

Assim como é possível apontar uma ligação entre gentrificação e OUC, é simples traçarmos um paralelo entre gentrificação e retrofit.

Basicamente, o retrofit é a revitalização de imóveis antigos por meio de projetos de modernização dos respectivos aspectos construtivos e arquitetônicos.

Não é difícil entender o porquê de o retrofit haver surgido na Europa como uma tendência na arquitetura e no design: o chamado “velho continente” possui uma incalculável quantidade e variedade de edifícios antigos, muitas vezes inutilizados por terem sido erguidos com tecnologias há muito ultrapassadas.

Desse modo, com a aplicação de técnicas de engenharia e arquitetura, os europeus foram encontrando maneiras de preservar memória e patrimônios históricos ao mesmo tempo em que davam nova vida a espaços ociosos e degradados, modernizando-os e adequando-os a novos usos, seja residenciais, seja comerciais.

Naturalmente, um edifício retrofitado passa a ter um maior valor de mercado, ancorado em fachadas “rejuvenescidas”, instalações hidráulicas e elétricas totalmente refeitas e ambientalmente adequadas, melhoramentos em áreas de circulação, proteção contra incêndios etc, o que gera um inevitável efeito dominó em todo o entorno.

E, logo, patrimônios imobiliários até então desvalorizados passam a valer exponencialmente mais, algo que, evidentemente, interessa ao direito tributário.

A tributação no contexto da gentrificação

De que maneira as mudanças propiciadas pela gentrificação, seja ela espontânea ou dirigida por algum esforço de autoridades públicas, produzem efeitos do ponto de vista tributário? E de que maneira o direito tributário pode ser utilizado na condução de um processo de gentrificação?

A “Lei do Retrofit”

Uma primeira abordagem coloca a tributação como fator de incentivo a projetos estatais, no mais das vezes viabilizados por meio de OUCs, voltados para a recuperação ou reestruturação de determinadas áreas.

Para ilustrar, veja-se a Lei 17.577/2021, originada do Poder Executivo do Município de São Paulo e aprovada na forma de Substitutivo do Legislativo. A norma, que “dispõe sobre o Programa Requalifica Centro, estabelecendo incentivos e o regime específico para a requalificação de edificações situadas na Área Central” da capital paulista, define requalificação como “a intervenção em edificação existente visando a sua adequação, recuperação e modernização por meio da atualização de seus sistemas prediais e operacionais, com ou sem aumento de área construída internamente à edificação original, estando possibilitada a mudança de uso”.

Para motivar essa requalificação, a Lei oferece aos interessados incentivos fiscais relativos ao IPTU, ISSQN, ITBI e taxas municipais, nestes termos:

Art. 16. Aplicam-se os seguintes incentivos fiscais à requalificação de edificações localizadas na Área Central licenciadas nos termos desta Lei, desde que voltadas à categoria de uso residencial, mesmo nas hipóteses em que a requalificação objetive a mudança de uso para tais subcategorias:

I – remissão dos créditos do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para as edificações objeto da requalificação, observado, como termo, a expedição do respectivo certificado de conclusão;

II – isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) nos 3 (três) primeiros anos a partir da emissão do respectivo certificado de conclusão;

III – aplicação de alíquotas progressivas, em frações iguais, para o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), pelo prazo de 5 (cinco) anos após a isenção de que trata o inciso II do caput deste artigo, até que se alcance, a partir do 6º ano, a alíquota integral prevista na normatização;

IV – redução para 2% (dois por cento) na alíquota do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS relativos aos serviços tomados integrantes do item 7 ao art. 1º da Lei nº 13.701, de 24 de setembro de 2003 – “Serviços relativos à engenharia, arquitetura, geologia, urbanismo, construção civil, manutenção, limpeza, meio ambiente, saneamento e congêneres”, incidente sobre a requalificação para os imóveis situados na Área Central, observado o limite previsto no art. 2º da Lei Complementar nº 157, de 29 de dezembro de 2016;

V – isenção do Imposto sobre Transmissão “intervivos” aplicável a imóveis que serão objeto de requalificação, mediante a apresentação do alvará de aprovação e de execução de requalificação ou alvará de aprovação e de execução de requalificação associada à reforma;

VI – isenção de taxas municipais para instalação e funcionamento, pelo prazo de 5 (cinco) anos, contados da entrada em vigor desta Lei.

Os artigos 18 e 19 da Lei 17.577/2021, que ficou popularmente conhecida como “Lei do Retrofit”, deixam claro o espírito do projeto:

Art. 18. Os recursos auferidos pela aplicação desta Lei serão destinados ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) para fins de provisão habitacional de interesse social preferencialmente em edifícios a requalificar na Área Central.

Art. 19. Os pedidos de requalificação de edificação existente formulados com base nesta Lei estarão isentos da cobrança de taxas e emolumentos referentes ao processo de licenciamento.

Conquanto seja criticada pela aprovação em tempo recorde, sem o devido debate com entidades da sociedade civil e sem estudos técnicos mais profundos quanto aos impactos para a municipalidade, inclusive na questão ambiental, além de ter gerado renúncia fiscal de estimados R$ 200 milhões por ano, a “Lei do Retrofit” paulistana é um exemplo do direito tributário sendo utilizado para a implementação de uma determinada política pública, já existindo, também uma “Lei do Retrofit” no Rio de Janeiro e inciativas semelhantes em outras cidades brasileiras.

Como contraponto, vale mencionar o que afirmou, em matéria publicada pouco após a entrada em vigor da Lei, a arquiteta e urbanista Danielle Cavalcanti Klintowitz, Doutora em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV): “O centro precisa passar por uma intervenção importante. Temos muitos imóveis vazios que precisam ser ocupados e que devem cumprir sua função social. Mas o que essa lei propõe é uma grande gentrificação”.

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Contribuição de melhoria: a tributação como mecanismo para corrigir distorções

Com efeito, há quem também aponte a tributação como ferramenta potencial de atenuação de segregação social e desigualdades resultantes de processos de gentrificação.

Tratamos indiretamente do tema ao destacarmos, em um de nossos conteúdos publicados anteriormente, que institutos tributários e financeiros, como a contribuição de melhoria e os incentivos e benefícios fiscais, constam expressamente no Estatuto da Cidade como formas legalmente previstas de indução de um desenvolvimento urbano equilibrado.

Figura antiga no direito tributário cuja origem remonta à Inglaterra de meados de 1250, a contribuição de melhoria foi inserida na Constituição Federal de 1988 tendo caráter de recuperação, a posteriori, do custo de obra pública que acaba por valorizar bens particulares de uma região, de forma a não gerar, ao menos em tese, enriquecimento de alguns em detrimento dos demais contribuintes. Seria uma maneira de não tornar distorcida a mais-valia imobiliária provocada por uma atuação estatal.

Nas definitivas palavras do consagrado autor Hugo de Brito Machado, a contribuição de melhoria é tributo que tem por finalidade “a realização da justiça, impedindo que o proprietário de imóvel valorizado com uma obra pública tenha proveito maior do que para as pessoas em geral resultam das obras públicas[1]”.

Justiça fiscal e capacidade contributiva

Por fim, já que falamos em justiça, é preciso trazer para a discussão as interseções entre a gentrificação e os primados da justiça fiscal e da capacidade contributiva.

A Constituição Federal, no § 1º de seu artigo 145, determina que, “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

Para os objetivos deste texto, não há necessidade de adentrarmos em classificações doutrinárias sobre a capacidade contributiva, se seria ela um princípio metajurídico, um subprincípio dos princípios da solidariedade e/ou da igualdade ou um princípio puro e simples. O que propomos para a reflexão é: em que medida o direito tributário precisa se adequar diante de manifestações concretas do fenômeno da gentrificação para que estejam preservadas a capacidade contributiva e, em consequência, a justiça fiscal?

Dizendo de outro modo, a capacidade contributiva é a possibilidade econômica de um cidadão de pagar tributos, seja ela subjetiva (quando leva em conta a situação pessoal real do contribuinte), seja ela objetiva (quando considera a materialização de riqueza pela aquisição/propriedade de um bem ou pela prática de um ato).

Ora, se essa possibilidade de pagar tributos é alterada em virtude de modificações causadas por um processo de gentrificação, quando um determinado imóvel passa a ter um valor venal múltiplas vezes maior por ter sido retrofitado ou por estar em uma área “revitalizada”, como fazer com que o direito tributário não se torne defasado em relação à nova realidade dos fatos?

E como manter o respeito à capacidade contributiva se um contribuinte desprovido de condições financeiras confortáveis é alçado, “de repente”, como proprietário de um patrimônio que se tornou muito mais valioso simplesmente pelo efeito cascata de um retrofit em imóvel vizinho ou de um processo de gentrificação mais amplo?

Seria justo que esse contribuinte se visse forçado a se desfazer desse patrimônio, por não ter condições de suportar a nova carga tributária, independentemente de ele não ter tido nenhuma influência naquela valorização imobiliária?

E quando se trata de um imóvel que é legado familiar, pertencente a uma mesma família há décadas ou talvez há séculos? Seria justo ver os proprietários “obrigados” a vender o bem por força das circunstâncias impostas pela gentrificação?

Poderia ser invocada, nesse cenário, a proteção do princípio da não-surpresa se, de um ano para o outro, um IPTU aumenta substancialmente, “sem aviso prévio”, como “sequela” de uma gentrificação?

Como se vê, as questões que se colocam são hipercomplexas e, também por isso, não pretendemos esgotá-las aqui. Mas é fato que a gentrificação e tudo o que ela carrega é relevante não só para a sociologia, para a ciência política ou para a arquitetura e urbanismo, sendo também de interesse do ponto de vista do direito tributário.   

Conclusão

Começamos este trabalho levantando a hipótese de você, leitor, já ter lido ou ouvido algo sobre gentrificação, ou mesmo de já ter tido alguma experiência empírica a respeito. De qualquer forma, esperamos que os ângulos de análise que sugerimos aqui tenham sido diferentes daquilo que você já conhecia.

A gentrificação é, assim como o dever de pagar tributos, algo do qual não podemos fugir, o que nos incita à busca pela compreensão do fenômeno.

Sendo inegável que a gentrificação e o direito tributário, quer queira, quer não, passam, em algum momento, a estar conectados, ficaremos felizes se tivermos contribuído para despertar em você questionamentos úteis para a aplicação da legislação aos casos concretos que fatalmente nascerão dessa conexão. 

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*Foto do Viaduto Santa Teresa, de Stenio Lima no site da PBH.


[1] MACHADO, Hugo de Brito. Contribuição de Melhoria. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT. Belo Horizonte, ano 9, n. 50, p. 7-25, mar./abr. 2011. p. 7.

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