Há uma máxima do direito que repetimos com certa frequência em nossos artigos: quem não registra, não é dono.
A partir dessa simples afirmativa podemos perceber a relevância do registro imobiliário, que é parte fundamental para a segurança jurídica de todas as negociações do setor: seja uma compra e venda, uma promessa ou compromisso, a implementação de incorporação imobiliária, na constituição de alienação fiduciária, na instituição de condomínios de lotes, edilício ou em regime de multipropriedade… São inúmeras as possibilidades!
E em todas elas o registro/averbação é requisito imprescindível para a própria regularização do negócio. Com a formalização da transação em cartório, além de segurança jurídica, aquele pacto será dotado de publicidade e produzirá efeitos erga omnes, ou seja, perante terceiros.
Assim, se o registro imobiliário é tão importante para a segurança das negociações que movimentam o setor, ele precisa ser fiel à realidade do imóvel. Concorda?
Contudo, erros acontecem e esses registros, do mesmo modo, não estão isentos de incorreções. Principalmente, ao considerarmos a infinidade de imóveis, matrículas e cartórios existentes em todo o território nacional.
Diante da possibilidade de algum equívoco no ato de registro de um imóvel ou de uma transação imobiliária, nasce a necessidade de retificação desses erros.
No artigo de hoje, trataremos, especificamente, sobre a retificação de área de imóveis, que assim como diversos outros institutos no Direito Imobiliário sofreu com alterações pela Lei 14.382/2022.
Buscaremos, então, apresentar o procedimento de retificação, sua relevância e o que a nova lei dispõe sobre ele.
Índice
Matrícula imobiliária
Em um dos nossos artigos anteriores, especificamente sobre a Lei 13.097 e o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel, tratamos da matrícula imobiliária, que, para o imóvel, é como se fosse o CPF para a pessoa natural.
A matrícula é, portanto, um número que vai identificar e distinguir um imóvel dos demais.
Para ser considerado regular, um imóvel precisa, necessariamente, ter um número de matrícula.
Junto a essa matrícula será registrado/averbado todo o histórico do imóvel: mudança de titularidade, constituição de ônus reais, morte dos proprietários, casamentos etc.
Todo este histórico poderá ser visualizado a partir da certidão de matrícula do imóvel, tal como ilustrado na imagem abaixo:
Além da matrícula (número) que distinguirá um imóvel do outro, constará, também, a descrição detalhada do imóvel: sua natureza (lote, apartamento, casa, terreno, fazenda etc.), extensão (área em m² ou hectares), sua localização, seus confrontantes (imóveis limítrofes) e demais informações aptas a especificar aquele bem.
É justamente nessa descrição do imóvel que poderá haver alguma divergência.
No que diz respeito a essas divergências, a Lei de Registros Públicos cuidou de tratar do procedimento de retificação nos seus artigos 213 e 214.
Vejamos, a seguir, como é regulado esse procedimento.
A retificação de área de imóveis
Atualmente, a construção civil já possui tecnologia o suficiente para que a descrição do imóvel seja a mais fidedigna possível. Existem instrumentos que tornam a medição um procedimento mais simples e célere.
Isso não era possível há alguns anos, quando as descrições dos imóveis continham referências como “até a mangueira grande” ou “até a margem do córrego”. E se a mangueira fosse cortada? E se o córrego secasse?
Hoje, descrições como essa não são mais possíveis. Mas, considerando a quantidade de imóveis já registrados dessa forma, a retificação de área é um procedimento essencial para adequar o registro do imóvel à sua realidade física.
Como, então, o registro poderá exprimir a realidade dos fatos? Por meio da retificação, que poderá se dar de forma judicial ou administrativa.
Retificação judicial
Nesse contexto, a Lei de Registros Públicos trouxe em sua redação originária o procedimento judicial para retificação de registro:
Art. 213. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar sua retificação, por meio de processo próprio.
Art. 214. A requerimento do interessado, poderá ser retificado o erro constante do registro, desde que tal retificação não acarrete prejuízo a terceiro.
§ 1º A retificação será feita mediante despacho judicial, salvo no caso de erro evidente, o qual o oficial, desde logo, corrigirá, com a devida cautela.
§ 2º Se da retificação resultar alteração da descrição das divisas ou da área do imóvel, serão citados, para se manifestarem sobre o requerimento, em dez (10) dias, todos os confrontantes e o alienante ou seus sucessores.
§ 3º O Ministério Público será ouvido no pedido de retificação.
§ 4º Se o pedido de retificação for impugnado fundamentadamente, o Juiz remeterá o interessado para as vias ordinárias.
§ 5º Da sentença do Juiz, deferindo ou não o requerimento, cabe o recurso de apelação com ambos os efeitos.
Até o ano de 2004, o único procedimento possível para retificação, independentemente da natureza – litigiosa ou não – era em via judicial.
Atualmente, contudo, só são direcionadas ao Judiciário as demandas que possuem alguma divergência entre as partes envolvidas quanto à área a ser retificada.
Retificação administrativa de área
Com o advento da Lei 10.931/2004, que alterou a Lei de Registros Públicos, tornou-se possível realizar o procedimento administrativo de retificação de área, ou seja, diretamente no Cartório de Registro de Imóveis, podendo ser iniciado de ofício ou a requerimento do interessado, a depender da espécie de retificação necessária.
Nesse sentido, o artigo 213 passou a especificar as hipóteses de retificação e distingui-las entre aquelas que são passíveis de alteração de ofício ou somente mediante requerimento. Podemos esquematizar as possibilidades da seguinte forma:
RETIFICAÇÃO | DE OFÍCIO | A REQUERIMENTO |
Omissão ou erro cometido na transposição de qualquer elemento do título | Sim | Sim |
Indicação ou atualização de confrontação | Sim | Sim |
Alteração de denominação de logradouro público, comprovada por documento oficial | Sim | Sim |
Retificação que vise a indicação de rumos, ângulos de deflexão ou inserção de coordenadas georeferenciadas, em que não haja alteração das medidas perimetrais | Sim | Sim |
Alteração ou inserção que resulte de mero cálculo matemático feito a partir das medidas perimetrais constantes do registro | Sim | Sim |
Reprodução de descrição de linha divisória de imóvel confrontante que já tenha sido objeto de retificação | Sim | Sim |
Inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes, comprovada por documentos oficiais, ou mediante despacho judicial quando houver necessidade de produção de outras provas | Sim | Sim |
Inserção ou alteração de medida perimetral de que resulte, ou não, alteração de área | Não | Sim |
Como se vê, quando se tratar de um erro meramente material ou, ainda, se a alteração solicitada puder ser comprovada por documento oficial (por exemplo, mudança de logradouro), a retificação poderá ser realizada de ofício ou mediante requerimento da parte interessada.
Já quando a alteração solicitada importar em alteração de medida perimetral, alterando-se ou não a área do imóvel, a retificação não poderá se dar de ofício. Nesses casos, a parte interessada deverá apresentar requerimento, acompanhado da planta do imóvel e seu respectivo memorial descritivo, que deverá ser feito por profissional habilitado perante o CREA.
Por exemplo: Um imóvel com 10m de testada por 200m de comprimento (área de 2.000m²) nunca sofreu alteração de metragem. Porém, no seu registro, por equívoco no ato de abertura da matrícula, constou a metragem de 10m de testada por 180m de comprimento.
Neste caso, o profissional habilitado fará e medição do terreno e apresentará os documentos topográficos exigidos por lei, de forma a atestar o equívoco na descrição da medida do imóvel.
Requerimento administrativo de retificação de área
O requerimento de retificação pela via administrativa será apresentado pela parte interessada diretamente ao Cartório onde o imóvel está registrado.
Esse requerimento deverá conter a assinatura dos interessados e confrontantes, com firma reconhecida.
Os documentos necessários para retificação de área, que devem acompanhar o requerimento, são:
- Os documentos pessoais dos interessados, bem como sua qualificação completa;
- Os documentos pessoais e a qualificação dos confrontantes do imóvel;
- Os documentos relativos ao imóvel, tais como as certidões atualizadas da matrícula, certidões de IPTU ou ITR, a depender da natureza do imóvel.
Trabalhos topográficos
De acordo com o Provimento Conjunto 93/2020/CGJ/TJMG, que regula a atividade cartorária no Estado de Minas Gerais, a planta do imóvel e o memorial descritivo também deverão conter a assinatura dos proprietários, do responsável técnico pelos documentos e dos confrontantes, todas com firma reconhecida em cartório.
Além disso, deverá constar o ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) do profissional responsável pela elaboração dos trabalhos.
Na ausência da assinatura de algum confrontante, ele poderá ser notificado pelo próprio Cartório, desde que haja requerimento do interessado neste sentido.
Impugnação
Geralmente, o requerimento administrativo de retificação de área é utilizado quando há concordância entre os interessados e confrontantes.
Caso haja conflito sobre a alteração do registro em relação a alguma área, o confrontante poderá apresentar impugnação no prazo de 15 (quinze) dias. O interessado será intimado acerca da impugnação e, na hipótese de não haver acordo entre as Partes, o procedimento administrativo será encaminhado ao Judiciário para apreciação.
Quando manifestamente infundada, o Oficial de Registro deverá rejeitar a impugnação, sendo cabível recurso contra a decisão.
De acordo com o Provimento n° 93/2020, considera-se infundada a impugnação:
Art. 916. Considera-se infundada a impugnação:
I – já examinada e refutada em casos iguais ou semelhantes pelo juiz de direito com jurisdição em Registros Públicos ou, onde não houver vara especializada, pelo juízo cível ou pela Corregedoria-Geral de Justiça;
II – em que o interessado se limite a dizer que a retificação causará avanço em sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá;
III – que não contenha exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada;
IV – que ventile matéria absolutamente estranha à retificação;
V – que o oficial de registro, pautado pelos critérios da prudência e da razoabilidade, assim reputar.
Retificação
Se Se não for impugnada ou caso as Partes cheguem a um consenso, o Oficial do Registro procederá à retificação da área do imóvel, para que passe a corresponder à realidade fática.
Mudanças da Lei 14.382/2022
Até aqui, explicamos o procedimento de retificação de área de imóvel: no que consiste, hipóteses de cabimento e por quem pode ser requerido, para que serve, e, especificamente, na modalidade administrativa, como ele deve ser feito.
Contudo, a Lei 14.382/2022, além de instituir o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP), trouxe uma série de alterações aos procedimentos cartorários, inclusive ao de retificação administrativa de área.
Até a data de promulgação da Lei, quando o interessado precisava retificar alguma informação do registro, o requerimento deveria conter a assinatura dos confrontantes do imóvel.
E quem poderia ser considerado confrontante do imóvel?
A lei não trazia essa definição.
No Estado de Minas Gerais, o Provimento n° 93/2020 determinava que confrontantes são os proprietários OU os ocupantes dos imóveis contíguos.
Logo, havendo anuência do ocupante do imóvel, ou seja, o possuidor, locatário, promissário comprador, detentor, usucapiente, usufrutuário etc., seria dispensável a anuência do proprietário registral.
Lado outro, se o proprietário, ou seja, aquele cujo nome consta no registro da matrícula do imóvel como tal, concordasse, não seria necessária a anuência do ocupante.
Tal requisito alternativo facilitava o procedimento de retificação de área, já que, em muitas situações, a tentativa de localizar o proprietário registral do imóvel se torna uma verdadeira via crucis.
Infelizmente, a situação mudou com a entrada em vigor da Lei 14.382/2022.
Agora, o conceito de confrontante está previsto na lei, no novo parágrafo 10, incluído no artigo 213, que passou a prever:
Art. 213 (…)
§ 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte:
I – o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos;
II – o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 200 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes; e
III – não se incluem como confrontantes:
a) os detentores de direitos reais de garantia hipotecária ou pignoratícia;
b) os titulares de crédito vincendo, cuja propriedade imobiliária esteja vinculada, temporariamente, à operação de crédito financeiro.
Nos termos da nova lei, portanto, passaram a ser considerados confrontantes:
- Os proprietários E
- Os titulares de direitos reais sobre o imóvel.
Assim, o mero ocupante/possuidor do imóvel não mais é considerado confrontante pela Lei de Registros Públicos, e sua anuência não é mais suficiente ou necessária para a retificação da área do imóvel.
Em que pesem os inúmeros avanços trazidos pela Lei 14.382/2022 para o setor imobiliário, nesse ponto em específico, a norma deixou a desejar, pois criou um óbice ao procedimento administrativo de retificação de área que, a princípio, deveria ser simples.
Afinal, como dito no início, localizar o proprietário registral do imóvel pode ser uma tarefa árdua e, às vezes, impossível. Para esses casos, depois de muitas tentativas, é cabível a citação/intimação por edital.
Além disso, ter que intimar todos os titulares de eventuais direitos de crédito sobre os imóveis contíguos poderá dilatar ainda mais o procedimento que, repita-se, deveria ser simples, já que não implica na aquisição originária de área (usucapião).
Porém, com a introdução do parágrafo 10, o procedimento de retificação administrativa de área de imóvel poderá ser mais moroso e oneroso.
Conclusão
Vimos até aqui a importância da matrícula e do registro do imóvel para a validação de operações e direitos de propriedade.
Dada a sua relevância, o registro do imóvel deve corresponder à realidade.
Caso haja alguma divergência, é possível requerer a retificação de área tanto na esfera judicial quanto administrativa.
A Lei de Registros Públicos condicionava a retificação à concordância dos confrontantes do imóvel, que poderiam ser o proprietário ou o ocupante.
Porém, com a Lei 14.382/2022, o conceito de “confrontante” foi limitado, passando a se referir somente aos proprietários e titulares de direitos reais sobre o bem.
Isso significa que, agora, a intimação do mero ocupante ou possuidor do imóvel não mais é suficiente para o procedimento de retificação.
Assim, apesar dos inúmeros avanços da nova lei, tornar mais complexo e burocrático um procedimento administrativo, feito em Cartório, não nos parece o melhor caminho para otimizar e melhorar o sistema.
Afinal, as dificuldades do processo acabam induzindo os usuários à manutenção de irregularidades nos registros dos imóveis – o que, reiteramos, é contrário à finalidade do registro, que deve ser fiel à realidade do imóvel.
Temos diversos artigos sobre o mercado imobiliário no blog, clique aqui para ler nossas outras publicações!
Se você gostou deste artigo ou ainda tem alguma dúvida sobre o tema, deixe seu comentário logo abaixo e inscreva-se para receber em primeira mão as nossas próximas publicações.
Você também poderá nos avaliar no Google. Seu feedback é muito importante para nós!
*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.
Trackbacks/Pingbacks