Há muitos anos se iniciou no Brasil uma grande discussão sobre a possibilidade de se implantar os então chamados “condomínios fechados”.  

Como a Lei 6.766/79, que regula em âmbito federal o parcelamento do solo urbano, não previa a possibilidade de fechamento dos loteamentos e desmembramentos, os empreendedores da área, aos poucos e de forma esparsa, foram buscando saídas para atender a um anseio cada vez maior do mercado imobiliário: garantir segurança aos proprietários. 

Nesse contexto, muito antes da formalização legal, a nível federal, do condomínio de lotes, que, como veremos, se deu por meio da Lei 13.465/2017, a prática imobiliária já emplacara, em diversas cidades brasileiras, leis municipais que autorizavam, de uma forma ou de outra, a construção de muros ao redor do loteamento e a implantação de controle de acesso. 

Ainda assim, todas as áreas do empreendimento que não fossem, efetivamente, lotes, como as vias internas de circulação, praças, áreas institucionais, dentre outras, continuavam a ser de domínio público, ou seja, ainda que o controle de acesso fosse aceito e, de certa forma, houvesse na prática uma concessão de área pública para uso quase particular, não se podia impedir, legalmente, o acesso de terceiros às áreas internas (públicas) do loteamento

Com o regramento – mesmo que ainda deficiente – do condomínio de lotes, muita coisa mudou. 

Neste artigo mostraremos as diferenças entre condomínio de lotesloteamento aberto e loteamento de acesso controlado, abordando tais institutos à luz da Lei 6.766/79, que regula o parcelamento do solo urbano, e da Lei 4.591/64, que gere os condomínios e a incorporação imobiliária

Também explicaremos como conciliar questões tão distintas (parcelamento e incorporação) para que o processo de aprovação e registro do condomínio de lotes seja o mais adequado possível, independentemente das naturais variações das legislações municipais.  

 

Conceito e tipos de condomínio 

 

Em publicação anterior sobre a convenção de condomínio, mostramos que existem hoje, no Direito Brasileiro, cinco tipos distintos de condomínio: voluntário, necessário, edilício, de lotes e em multipropriedade

No interesse deste artigo, nos limitaremos a relembrar que condomínio nada mais é do que propriedade conjunta, por mais de uma pessoa, de um mesmo bem. 

Se quiser saber mais sobre os todos os tipos de condomínio, clique aqui

O condomínio edilício, do qual o condomínio de lotes é uma espécie, se forma quando, sobre um mesmo terreno, passam a existir áreas de uso comum, indivisíveis e inalienáveis (ou seja, que não podem ser vendidas separadamente), e áreas de uso privativo, que são registradas em matrículas autônomas e podem ser livremente alienadas por seus proprietários. 

Se você mora em um apartamento ou trabalha em um escritório dentro de um prédio, certamente já entende o conceito.  

Cada apartamento, loja e/ou sala, chamados unidades autônomas, são de uso exclusivo e privativo de seus respectivos proprietários.  

Mas, além dessa propriedade exclusiva, cada um dos donos de unidades autônomas também possui uma fração ideal do terreno e de todas as áreas comuns.  

Logo, em um prédio com 8 unidades autônomas, por exemplo, cada proprietário tem uma fração ideal de 1/8 do terreno e das áreas comuns, mas, por razões óbvias, nenhum deles pode se apropriar, de forma exclusiva, do próprio terreno ou de uma área comum. 

Veremos mais abaixo o porquê de o condomínio de lotes ser considerado uma espécie de condomínio edilício. 

Antes, no entanto, vamos entender o que é um condomínio horizontal, loteamento e loteamento de acesso controlado. 

 

Condomínio horizontal 

 

O condomínio horizontal, também chamado de “deitado”, foi criado em 1964 pela ainda vigente Lei 4.591, que regula as incorporações imobiliárias. 

O artigo 8º da referida Lei assim determina (não estranhe a redação; ela é original do português arcaico): 

 

Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário dêste ou o promitente cessionário sôbre êle desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte: 

a) em relação às unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação e também aquela eventualmente reservada como de utilização exclusiva dessas casas, como jardim e quintal, bem assim a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá às unidades; 

b) em relação às unidades autônomas que constituírem edifícios de dois ou mais pavimentos, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação, aquela que eventualmente fôr reservada como de utilização exclusiva, correspondente às unidades do edifício, e ainda a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá a cada uma das unidades; 

c) serão discriminadas as partes do total do terreno que poderão ser utilizadas em comum pelos titulares de direito sôbre os vários tipos de unidades autônomas; 

d) serão discriminadas as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si. 

 

O condomínio horizontal, como se vê, se forma quando existem duas ou mais edificações (assim entendidos prédios ou casas, e não unidades autônomas apenas), pertencentes a pessoas distintas, em um mesmo terreno

Se o incorporador, ao projetar o empreendimento, decide desmembrar o terreno em várias matrículas, registrando uma incorporação em cada um, não estaremos diante de um condomínio horizontal

Também é fácil perceber que o condomínio horizontal é espécie de condomínio edilício, pois nele haverá partes de uso exclusivo e partes de uso comum.  

Se o projeto é composto apenas por casas, as partes do terreno originário que cada edificação venha a ocupar, bem como seus quintais, varandas, jardins e demais partes acessórias, serão de propriedade e utilização exclusiva.

Para as demais partes do terreno originário, haverá o condomínio por fração ideal.

Se a composição é de conjunto de prédios, cada unidade autônoma terá, além da fração sobre as áreas comuns da sua própria edificação, também uma fração ideal das áreas compartilhadas por todos os edifícios e, claro, do terreno. 

Essa previsão legal do condomínio horizontal foi bastante utilizada, antes da Lei 13.465/2017, para justificar a aprovação de condomínios de lotes.  

O grande problema é que, por estar inserido na Lei de Incorporações, o condomínio horizontal demanda a edificação das casas ou prédios projetados ou, no mínimo, a aprovação de seu projeto arquitetônico, engessando sobremaneira o aspecto comercial do empreendimento. 

Afinal, ao contrário, por exemplo, dos Estados Unidos, onde é comum se encontrar bairros inteiros no subúrbio com casas praticamente idênticas, no Brasil esse tipo de projeto não é comum.  

No geral, as pessoas, seja qual for a sua classe social, querem morar um imóvel personalizado e adequado às suas próprias necessidades. 

 

Loteamento 

 

Então, se o condomínio horizontal não se mostra adequado à implantação de empreendimentos de terrenos sem construção, por que não se valer das previsões da Lei 6.766/79 e simplesmente lotear ou desmembrar a gleba? 

Algumas semanas atrás publicamos um guia completo sobre a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, ao qual remetemos o leitor, em que explicamos a fundo todo o processo de aprovação, registro e implantação de um loteamento

Embora não exista mais, na legislação federal, previsão de percentual mínimo de área a ser transferido ao Município nos projetos de parcelamento do solo (a redação original do § 1º do artigo 4º da Lei 6.766/79 estabelecia o mínimo de 35% da gleba), a verdade é que as leis municipais, invariavelmente, contêm regras nesse sentido. 

Mesmo que se observe uma grande variação nessas leis locais, é inevitável a perda de uma parte significativa da gleba original em favor do Município. Essa é uma característica incontornável do loteamento

Afinal, o parcelamento do solo nada mais é do que a realização prática do crescimento e desenvolvimento da área urbana do Município e sua essência é, na verdade, ser aberto, criando áreas comuns que poderão ser usufruídas por toda a população.  

Por meio desse processo, são efetivamente criados bairros e até regiões inteiras. Todo bairro atual, observe, nasceu de um loteamento ou desmembramento e um dia fez parte de uma gleba. 

A atração populacional para essa nova região da cidade, uma vez concluídas as obras do loteamento, trará consigo uma demanda por serviços públicos, como coleta de lixo, iluminação pública, fornecimento e coleta de água e esgoto, transporte, educação, saúde, segurança, bem como equipamentos públicos e comunitários, como praças, parques, áreas verdes e estrutura viária.  

Essa demanda será proporcional à densidade esperada de ocupação, mas, qualquer que seja a sua intensidade, uma grande área será necessária para a infraestrutura de prestação dos serviços e para a implantação dos equipamentos urbanos e comunitários. 

Nesse cenário, parece óbvio o caminho seguido pela Lei 6.766/79 e, em tempo mais recente, pelo Estatuto da Cidade.  

Todos têm o direito constitucional a viver em uma cidade organizada e equilibrada, e isso só pode ser alcançado com um controle público sobre o processo de desenvolvimento.  

Ignorar essa importante participação do Município no planejamento urbano resultaria, fatalmente, na criação de verdadeiras bolhas urbanas, microcidades dentro da cidade, que só poderiam ser usufruídas pelos privilegiados proprietários. 

Outra importante característica do loteamento, derivada diretamente dessa “perda” de área em favor do Município, é que as áreas comuns do empreendimento são públicas, podendo, portanto, serem acessadas e usufruídas por qualquer pessoa.  

Se, de um lado, isso retira dos proprietários de lotes o ônus futuro de manutenção dessas áreas comuns do empreendimento (obrigação que será do Município), de outro ele impede, a princípio, a execução de medidas destinadas a garantir a segurança dos ocupantes. 

Por isso é que nos empreendimentos voltados ao público de maior renda, tampouco o loteamento “tradicional” foi capaz, no passado, de atender à demanda do mercado imobiliário.

 

Loteamento de acesso controlado 

 

A solução, então, começou a aparecer pontualmente nas legislações municipais. 

Antes que a Lei 13.465/2017 regulamentasse a figura do loteamento de acesso controlado, vários planos diretores já previam, com algumas variações de nomenclatura, essa possibilidade. 

Em excelente dissertação de mestrado, o advogado Bernardo Amorim Chezzi expõe os resultados de uma pesquisa feita em nada menos do que 50 leis municipais (CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 73-93). 

Em todas elas, de um jeito ou de outro, o condomínio de lotes já estava tratado, com variações relevantes sobre a vinculação (ou não) a um processo específico de parcelamento e sobre a necessidade (ou não) de transferência compulsória de áreas ao Município. 

Na mesma obra (p. 52), o autor explica que:

 

A busca por esse tipo de configuração de “condomínio de lotes” não encontrava especificamente na legislação federal um claro reconhecimento de validade como modelo de organização da propriedade. Embora haja diversos registros de condomínios de lotes, sobretudo a partir dos anos 1990, somente em 2017 essa figura civil seria explicitamente reconhecida pela legislação federal (LF nº 13.465/2017), em que pese se notar a anterior iniciativa de diversos municípios em reconhecer essa tipologia dentro da organização local do seu solo, inserindo-a no regramento urbanístico. 

 

Isso porque, enquanto se seguia no campo federal a discussão sobre se essa tipologia de organização da propriedade estava albergada pela legislação federal (e se o condomínio de lotes era lícito ou ilícito), diversos municípios reconheceram-no de diferentes formas em sua legislação local, indo além, para regulamentar os caracteres de sua implantação em seu solo. 

 

Esse regramento local do condomínio de lotes, todavia, não garantia segurança jurídica diante da inexistência de lei federal, gerando intensos debates, inclusive judiciais, entre os proprietários e os moradores e usuários do entorno do empreendimento. 

Seja como for, o que era conhecido por loteamento ou condomínio fechado na maior parte das vezes era um loteamento “comum” que, em algum momento (seja já no projeto, seja depois de implantado), obteve autorização municipal precária para construir muros perimetrais e instalar portaria com controle de acesso. 

Agora, com a edição da Lei 13.465/2017, pelo menos esse problema está superado, pois foi acrescido ao artigo 2º da Lei 6.766/79 um novo § 8º, com a seguinte redação: 

 

Art. 2º O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes. 

 

§ 1º Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. 

(…) 

§ 8º Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipalsendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.   

 

Note que há duas exigências importantes para o loteamento de acesso controlado: (i) as regras para controle de acesso devem ser regulamentadas por ato do Município – e isso pode ser feito por lei municipal ou no próprio processo de aprovação do loteamento – e (ii) qualquer pessoa que se identificar e se cadastrar na portaria, mesmo que não tenha autorização ou relação com qualquer proprietário do empreendimento, tem o direito de livre acesso e trânsito nas áreas comuns internas do loteamento. 

Mais uma vez, portanto, a questão da segurança, embora já “melhorada”, não se resolve por completo. 

Existia, ainda, seja em relação ao loteamento aberto, seja quanto ao loteamento de acesso controlado, um outro problema de natureza prática: como os lotes são imóveis independentes entre si, não havia como se obrigar, legalmente, nenhum proprietário a suportar proporcionalmente as despesas comuns como conservação, limpeza, serviços de portaria e segurança e manutenção de áreas comuns (cujo uso fora cedido pelo município).

Veremos que isso também mudou quando falarmos das diferenças entre condomínio e associação.

 

Condomínio de lotes

 

O condomínio de lotes, como concebido pela Lei 13.465/2017, foi incluído como uma seção dentro do Capítulo VII do Título III do Código Civil, que trata do condomínio edilício.

Assim, para todos os efeitos, ele deve ser encarado e tratado como uma espécie de condomínio edilício.

A lei pecou ao utilizar a palavra “lotes” na definição desse tipo de condomínio, porque trouxe uma confusão conceitual, remetendo ao processo de loteamento e, consequentemente, a uma possível aplicação integral e exclusiva da Lei 6.766/79, embora isso não se verifique na prática.

Melhor seria, sem dúvida, chamar a figura de condomínio de terrenos.

Seja como for, no condomínio de lotes as unidades autônomas serão formadas pelos terrenos resultantes do projeto aprovado, um condomínio “sem construção”.

Além da propriedade exclusiva sobre as unidades, os futuros donos terão, também, uma fração ideal sobre todo o restante do empreendimento, formado pelas vias de circulação, áreas e equipamentos comuns (portaria, prédio administrativo, praças, clubes, áreas verdes etc.).

Antes de analisar as principais diferenças entre o condomínio de lotes e o loteamento, vejamos brevemente os argumentos daqueles que, antes da edição da Lei 13.465/2017, defendiam a possibilidade de implantação de lotes via condomínio e dos que rechaçavam essa hipótese.

 

Origem e discussões anteriores

 

Pode-se dizer, com segurança empírica, que a figura do condomínio de lotes é muito anterior à edição da Lei 13.465/2017, que apenas formalizou – não sem indesejáveis falhas – o que já se verificava em larga escala no mercado imobiliário nacional.

A origem do instituto, portanto, não é bem a lei federal, mas as várias leis municipais que, com uma ou outra roupagem, admitiram a criação de terrenos por meio de instituição de condomínio sem exigir que o empreendedor projetasse e/ou construísse, de fato, casas ou prédios no local.

E qual era o fundamento dos que defendiam essa possibilidade antes da promulgação da lei federal?

De forma bem sintética, a tese trazia uma interpretação sistemática do artigo 8º da Lei de Incorporações (4.591/1964) com o artigo 3º do Decreto-Lei 271, de 1967.

Esse Decreto-Lei era a principal norma sobre loteamentos urbanos antes da edição da Lei 6.766/79 e os defensores do condomínio de lotes antes da Lei 13.465/2017 argumentavam que, embora a Lei de Parcelamento do Solo Urbano tenha se ocupado de grande parte da matéria trazida pelo Decreto-Lei – o que implicaria a sua revogação tácita –, por não ter havido revogação expressa do DL e por ter ele sido modificado por lei posterior à 6.766/79, ele continuaria vigente no que não fosse incompatível com esta última lei.

E o seu artigo 3º, se considerado vigente, traz um importante gatilho para a defesa do condomínio de lotes:

 

Art 3º Aplica-se aos loteamentos a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação.  

 

Veja, portanto, que não só a Lei de Incorporações é expressamente vinculada aos loteamentos, mas os pontos de contato são adaptados, ou seja, na aplicação dos conceitos da incorporação ao loteamento, o loteador se equipara ao incorporador, o comprador de lote ao condômino e, principalmente, as obras de infraestrutura à construção efetiva da edificação.

Logo, nos termos do Decreto-Lei, não é necessário efetivamente edificar, sendo suficiente a execução das obras de infraestrutura.

Ora, se o empreendedor pode, em um único terreno, erigir mais de uma edificação (artigo 8º da Lei 4.591/64) e, ao mesmo tempo,não é obrigado a edificar no “loteamento”, a conclusão defendida por muitos era no sentido da possibilidade do condomínio de lotes mesmo antes da formalização da figura de forma expressa.

E isso se refletiu, sem dúvida, nas inúmeras leis locais que, exercendo a autonomia de regulação do território urbano, autorizaram a implantação de empreendimentos dessa natureza.

Do outro lado, quem não admitia a possibilidade de criação de “lotes” por meio de condomínio levantava, essencialmente, três pontos:

1) o Decreto-Lei 271/1967 teria sido completamente revogado pela Lei 6.766/79;

2) ainda que se considerasse o DL vigente, o parágrafo primeiro do artigo 3º tornava tal artigo uma norma de eficácia limitada, uma vez que previa textualmente a necessidade de regulamentação, via decreto do Poder Executivo, para melhor dispor sobre a aplicação da Lei de Incorporações aos loteamentos, decreto este que jamais foi editado; e

3) a criação de lotes por meio de condomínio seria uma verdadeira burla à legislação urbanística, pois acabaria por contornar, principalmente, a necessidade de doação de áreas da gleba original ao Município, impedindo um crescimento ordenado e racional da cidade.

Sem adentrar a discussão sobre a eficácia e aplicabilidade, ou não, do artigo 3º do Decreto-Lei 271/1967, fato é que o principal argumento dos contrários ao condomínio de lotes, na prática, caía por terra.

Isso porque, conforme pesquisa do advogado Bernardo Chezzi, exposta na obra já mencionada acima (p. 87), nada menos do que 40 das 50 leis estudadas, todas permitindo o condomínio de lotes, previam em algum grau a obrigação de doação de áreas ao Município. Em relação às outras 10 não foi possível afirmar que os Municípios descartavam a obrigação, já que isso poderia estar previsto em alguma outra lei municipal.

Logo, o interesse urbanístico estava sendo preservado mesmo antes da edição da Lei Federal.

 

Formalização por meio da Lei 13.465/2017

 

Veio, então, a formalização do condomínio de lotes pela Lei 13.465/2017.

Mostraremos na próxima semana que essa Lei fez muito mais do que dispor sobre o condomínio de lotes, tratando a fundo, principalmente, a matéria da regularização fundiária (rural e urbana), e criando um novo direito real: o de laje.

No que interessa ao objeto deste artigo, a Lei 13.465/2017 optou por tratar o condomínio de lotes de forma difusa, acrescendo um novo artigo no Código Civil e 5 novas disposições na Lei 6.766/79:

 

Código Civil (10.406/2002) Lei de Parcelamento do Solo Urbano (6.766/79)
Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.

§ 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.

§ 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística.

§ 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor.
Art. 2º (…) § 7º O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes. § 8º Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.

_______________


Art. 4º (…) § 4º No caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros.

________________


Art. 36-A. As atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com o objetivo de administração, conservação, manutenção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem o empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis. Parágrafo único. A administração de imóveis na forma do caput deste artigo sujeita seus titulares à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos.

 

Sobre o péssimo artigo 36-A acrescido à Lei 6.766/79, falaremos no tópico seguinte.

Optamos por apresentar as alterações em formato de tabela para deixar claro como o legislador foi vacilante na correta classificação do condomínio de lotes.

Ao mesmo tempo em que inseriu o instituto no Código Civil como uma espécie de condomínio edilício, citando expressamente, no § 3º do novo artigo 1.358-A, a possibilidade de implantação por incorporação imobiliária, deixou de fazer qualquer alteração na Lei 4.591/64, que trata, exatamente, das incorporações.

Por outro lado, modificou a Lei de Parcelamento do Solo Urbano para dizer que um lote pode se formar como um imóvel autônomo (loteamento) ou unidade autônoma (condomínio de lotes) e atestou o óbvio (já que, mesmo em incorporações de edifícios, a regra se aplica) no novo § 4º do artigo 4º, reforçando que o Poder Público pode instituir limitações administrativas ao condomínio de lotes.

Essas inclusões na Lei 6.766/79 podem dar a entender, então, que o condomínio de lotes seria uma nova espécie de parcelamento do solo.

Para além da discussão doutrinária acerca da classificação jurídica do condomínio de lotes, a grande questão prática que se coloca é: para implantar um condomínio de lotes eu devo seguir as exigências da Lei de Incorporações, da Lei de Parcelamento do Solo Urbano ou de ambas?

Tentaremos responder isso mais à frente, mas, antes, vamos ver algumas diferenças substanciais no tratamento concedido por essas duas leis aos empreendimentos criados sob suas respectivas regências.

Para saber mais sobre a regularização fundiária e o direito real de laje, veja o nosso artigo dedicado.

 

Propriedade e responsabilidade pelas áreas internas do empreendimento no condomínio de lotes e no loteamento

 

O tratamento dado às áreas comuns internas do empreendimento é a primeira grande diferença entre o condomínio de lotes e o loteamento: embora sejam áreas comuns, no condomínio de lotes elas serão de propriedade privada (em condomínio) de todos os titulares de unidades autônomas; no loteamento, as áreas comuns são de propriedade pública, transferidas ao Município no ato do registro do projeto aprovado em cartório, integrando-se à cidade e podendo ser livremente utilizadas por pessoas sem nenhuma relação de propriedade com o empreendimento.

Em virtude dessa característica, caberá ao Condomínio de proprietários suportar as despesas de manutenção e conservação de todas as áreas comuns, inclusive das vias de circulação, mas, em contrapartida, nenhuma pessoa não autorizada poderá adentrar as dependências do empreendimento.

Analogicamente (e até porque o condomínio de lotes, como visto, é uma espécie de condomínio edilício), toda a área do empreendimento será tratada como se um prédio de apartamentos fosse, não só se admitindo o muramento total do perímetro e o controle de acesso, mas efetivamente o poder de impedir que terceiros não proprietários (ou por estes autorizados) ingressem nas áreas internas.

De se ver, portanto, que o condomínio de lotes acaba por formar um bairro exclusivo, ao qual somente algumas poucas pessoas terão acesso.

Não se pode ignorar, por outro lado, que é comum, nas legislações municipais, a previsão de cessão de direito de uso das áreas públicas internas de loteamentos com controle de acesso, delegando à associação de proprietários a obrigação de manutenção e conservação dessas áreas.

 

Condomínio X Associação de proprietários

 

A segunda grande diferença entre o condomínio de lotes e o loteamento (seja ele aberto ou de acesso controlado) é o fato de que no primeiro forma-se, automaticamente, com o registro do empreendimento aprovado em Cartório, um ente (o próprio condomínio) que, apesar de despersonalizado, será titular de direitos e deveres.

No processo de registro do empreendimento, a minuta da convenção de condomínio será um documento obrigatório, a regular futuramente todas as relações internas e externas do coletivo de proprietários.

Por isso, independentemente da vontade individual de cada condômino, todos estarão sujeitos às regras da convenção e não poderão, por “desassociação”, se escusar de cumpri-las.

O condomínio deverá contar, necessariamente, com um síndico e com os demais órgãos de administração previstos na convenção, todos eleitos na assembleia conhecida como a de instituição, normalmente realizada em data próxima ou posterior à conclusão das obras do empreendimento.

Já no loteamento, seja ele fechado ou com controle de acesso, não se forma, com o registro do projeto em Cartório, nenhum órgão administrativo.

Afinal, os lotes são totalmente independentes entre si e não haverá relação jurídica direta entre seus proprietários.

Mesmo assim, é lugar comum, em qualquer loteamento de acesso controlado, a constituição de uma associação de proprietários, cujas funções serão, na prática, idênticas à dos órgãos de administração do condomínio.

Essa associação, todavia, quase sempre vem acompanhada de litígio entre os proprietários que a constituíram e aqueles que não quiseram se associar para evitar ter que contribuir com as despesas comuns.

Afinal, de acordo com o inciso XX do artigo 5º da Constituição Federal, ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado.

Já por muitos anos se discute, no Judiciário, o embate entre esse direito de não associação e a proibição do enriquecimento sem causa. Afinal, mesmo que determinado proprietário não queira se associar – e ele tem esse direito –, o seu imóvel será, evidentemente, beneficiado pelos serviços prestados pela associação, como segurança, coleta de lixo, limpeza e conservação das vias de circulação, dentre outros.

Por isso, invocando o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, as associações de proprietários ingressam com ações de cobranças de contribuições não pagas por aquele proprietário não associado.

Para esclarecer, o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa é uma norma geral de Direito Civil que proíbe que qualquer pessoa aufira, em prejuízo de outrem, alguma vantagem sem causa jurídica, ou seja, sem um motivo que legitime essa vantagem.

Ele está formalizado no artigo 884 do Código Civil:

 

Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

 

À primeira vista, parece claro que há uma grande injustiça no fato de, às custas dos outros proprietários, alguém que se recusa a se associar seja beneficiado com a prestação de serviços em prol do seu imóvel, certo?

Errado! Não é o que entenderam, depois de anos de jurisprudência vacilante, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.

Como o tema foi analisado em detalhes em outro artigo, aqui nos limitaremos a informar que, até a edição da Lei 13.465/2017, o entendimento que predominou no Judiciário foi o de que a liberdade de associação deveria prevalecer sobre o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, de forma a ser inviável a cobrança, por associações de proprietários, de taxas de rateio de despesas comuns em face daqueles não associados.

Sobreveio, então, a Lei 13.465/2017, que acrescentou à Lei de Parcelamento do Solo Urbano (6.766/79) o seguinte artigo:

 

Art. 36-A. As atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com o objetivo de administração, conservação, manutenção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem o empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis.

Parágrafo único. A administração de imóveis na forma do caput deste artigo sujeita seus titulares à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos.

 

Por pior que seja a confusa redação desse novo artigo 36-A, depreende-se do todo, com enorme esforço interpretativo, que o legislador classificou os serviços comumente exercidos pelas associações de proprietários como atividade de administração de imóveis e, no parágrafo único, estabeleceu que todos os titulares dos imóveis, sejam eles associados ou não, devem respeitar as normas do estatuto da associação e suportar a consecução dos seus objetivos, ou seja, pagar proporcionalmente pelas despesas comuns.

Vê-se que o Congresso Nacional perdeu uma grande oportunidade de escrever, de forma direta, clara e simples, que os proprietários de imóveis em loteamentos com acesso controlado são obrigados a contribuir com as despesas comuns do empreendimento, sejam eles associados ou não.

Preferiu-se, contudo, o caminho da redação confusa e ambígua, deixando enorme espaço para interpretação e novos litígios.

Ainda assim, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 695911, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a seguinte tese (Tema 492):

 

“É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13.465/17 ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir do qual se torna possível a cotização de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, desde que, i) já possuidores de lotes, tenham aderido ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou, (ii) no caso de novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação tenha sido registrado no competente registro de imóveis.

 

Observe que o STF ainda impôs, mesmo depois da entrada em vigor do artigo 36-A, que aqueles que já eram possuidores de lotes só serão obrigados ao pagamento da taxa de manutenção se tiverem aderido ao ato constitutivo da associação. Subentende-se que, mesmo se depois o proprietário tenha optado por se desassociar, continuaria obrigado ao pagamento da taxa.

Sinceramente, parece-nos altamente restritivo e inventivo esse entendimento, pois, por mais confusa que seja a redação do artigo 36-A, ela não fala nada a respeito.

O segundo cenário que obrigaria o proprietário de lote em loteamento de acesso controlado a pagar a taxa seria a aquisição do imóvel depois da existência jurídica (ou seja, aprovação do estatuto social em assembleia) da associação, desde que o ato constitutivo tenha sido registrado no competente registro de imóveis, obviamente nas matrículas de todos os lotes.

Como se percebe, a questão é altamente nebulosa, não tendo sido satisfatoriamente resolvida nem pelo legislador e nem pelo STF. As demandas continuarão inundando o Poder Judiciário.

Caso se interesse sobre o assunto, veja o nosso artigo específico sobre associação de moradores em loteamentos.

 

Lei aplicável: 4.591/64 ou 6.766/79

 

Com a indefinição conceitual contida na Lei 13.465/2017, a questão central que se coloca é a respeito de quais exigências seguir nas etapas de aprovação e registro do projeto do empreendimento.

Seria o condomínio de lotes uma espécie de parcelamento do solo, atraindo a aplicação integral da Lei 6.766/79? Ou, na condição de condomínio edilício, estaria ele sujeito às normas do Código Civil e, principalmente, da Lei 4.591/64?

A resposta a essas perguntas passa, principalmente, pelo entendimento acerca do fenômeno do fracionamento do imóvel.

Loteamento, desmembramento, desdobro e divisão em unidades autônomas para formação de condomínio são, todos, formas de fracionamento um bem imóvel.

Nos três primeiros, há um fracionamento físico, de forma a gerar novos imóveis, absolutamente independentes entre si (ao menos a priori, pois os proprietários podem, por convenção, criar vínculos jurídicos entre eles).

Na formação de condomínio, todavia, o fracionamento é muito mais jurídico do que físico. Há, é claro, a criação de novos imóveis, tantos quanto forem as unidades autônomas do empreendimento, mas esses novos bens já nascem com um vínculo direto e quase indissociável entre si.

Diz-se “quase” porque existe a possibilidade de extinção do condomínio edilício, mas essa hipótese é tão rara (dependendo, quase sempre, da aquisição de todas as unidades autônomas por uma única pessoa) que não justifica uma maior atenção, pelo menos neste artigo.

O vínculo existente entre as unidades autônomas é necessário não só porque todas elas são, inevitavelmente, partes de um todo, detendo uma fração ideal tanto do terreno quanto das áreas comuns, mas especialmente porque as relações jurídicas entre os proprietários – e entre eles, como um ente coletivo, e terceiros – precisam ser claramente reguladas.

O condomínio, de fato, se relaciona em bloco, como um único sujeito, com terceiros.

É administrado por um síndico e, quando previsto em convenção, por um conselho administrativo/fiscal, sendo certo que os condôminos possuem, em relação a todos os demais, direitos e deveres.

Não é, veja, uma decisão voluntária do condômino aderir às regras da convenção de condomínio. Não é, igualmente, uma faculdade cumpri-las ou não.

A aquisição de uma unidade autônoma em condomínio edilício, seja qual for o seu formato (tradicional, horizontal, de lotes), pressupõe a concordância do adquirente com as normas da convenção, que lhe poderão ser impostas a qualquer tempo.

E é exatamente essa característica “una” do condomínio, a sua indivisibilidade e o perene vínculo das unidades autônomas (e de seus proprietários, obviamente) com o todo comum que justifica a caracterização do condomínio de lotes como uma espécie de condomínio edilício, sujeito, primordialmente, às normas do Código Civil (que trata exaustivamente do condomínio e seus vários tipos nos artigos 1.314 a 1.358-U) e da Lei 4.591/64, que dispõe sôbre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias.

Assim, quanto à sua caracterização e, principalmente, seu processo de fracionamento, o condomínio de lotes estará essencialmente sujeito às mesmas regras aplicáveis aos demais tipos de condomínio.

Isso não significa, todavia, que a legislação urbanística, em especial a Lei 6.766/79, não seja em nada servível ao condomínio de lotes. Pelo contrário.

Como já visto no tópico sobre a Lei 13.465/2017, o novo artigo 1.358-A do Código Civil veio acompanhado de três parágrafos. O segundo deles menciona expressamente a necessidade de respeito à legislação urbanística.

Há, ainda, a (já existente e apenas reforçada) possibilidade de imposição de limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros, prevista no § 4º do artigo 4º da Lei 6.766/79.

Mas em que grau a legislação urbanística se aplica ao condomínio de lotes?

Em tudo aquilo que disser respeito ao desenvolvimento urbano, integração com o entorno e garantia do bem-estar tanto a população que usufruirá do empreendimento quanto daquela que, de alguma forma, se relacionará com ele.

Grosso modo, a legislação urbanística é voltada para o cumprimento da função social da cidade e, nesse contexto, mesmo que o condomínio de lotes seja um empreendimento 100% privado, não se pode admitir a formação de “ilhas”, microcidades dentro da cidade, porque isso prejudica, evidentemente, um ordenado e equilibrado desenvolvimento urbano.

Ainda que as áreas internas do empreendimento sejam de uso exclusivo de seus condôminos, não se pode esquecer que todos eles precisarão utilizar as vias públicas para chegar e sair de casa, seus filhos provavelmente estudarão em escolas próximas, as compras serão feitas em supermercados da região etc.

Essa inevitável pressão gerada pelo empreendimento diretamente na região de sua implantação (e indiretamente no restante da cidade) precisa ser equacionada por meio de regras contidas nas leis municipais, que poderão dispor sobre:

 

  • transferência obrigatória de áreas ao Município – externas aos limites do empreendimento, mas dentro da poligonal da gleba originária,
  • exigência, no processo de aprovação do projeto, de infraestrutura mínima nas áreas comuns internas do próprio empreendimento e, obviamente, servindo as unidades autônomas – que, afinal, são destinadas à futura edificação;
  • limitação de área total do empreendimento e/ou de número de unidades autônomas;
  • cobrança e fiscalização de respeito aos parâmetros urbanísticos – coeficiente básico, máximo, altimetria, afastamento e mínimo, dentre outros; e
  • imposição de limitações urbanísticas como proibição de cercamento por muros, limitação de altura dos muros, permeabilidade visual, direito de passagem e circulação, dentre outros.

 

A maior parte dessas exigências de cunho urbanístico residirá na etapa de aprovação do projeto do empreendimento, fazendo com que ele acabe se assemelhando bastante a um projeto de loteamento ou desmembramento.

 

Processo de registro de um condomínio de lotes

 

Adotando-se o entendimento exposto no tópico anterior, o processo de aprovação e registro de um condomínio de lotes seria bem próximo ao de qualquer incorporação imobiliária.

A diferença estaria, substancialmente, no projeto.

Enquanto na incorporação de um edifício ou conjunto de casas, o que deve ser aprovado é o projeto arquitetônico da(s) edificação(ões), no condomínio de lotes o projeto a ser submetido ao Município será bem similar ao de um loteamento, com indicação da divisão da gleba em quadras e lotes, locação do sistema viário e, de acordo com os parâmetros urbanísticos definidos na lei municipal, delimitação das áreas a serem transferidas ao Município, localizadas necessariamente fora do perímetro interno do empreendimento.

Parece-nos que também será adequada a obtenção, junto ao Município, das diretrizes para o uso do solo, traçado dos lotes, do sistema viário (parte do artigo 6º da Lei 6.766/79), com a diferença que não haverá áreas internas reservadas para equipamentos urbanos e comunitários.

O sentido de se obter as diretrizes junto ao Município reside no cumprimento da legislação urbanística, pois, ainda que se trate de um condomínio, sem áreas públicas na parte interna, é razoável se esperar uma adequada integração com o entorno, até porque, como visto no tópico sobre a Lei 13.465/2017, o Poder Público pode vir a estabelecer restrições administrativas ao empreendimento.

Para conhecer melhor os requisitos do projeto de loteamento e de seu processo de aprovação, clique aqui.

Uma vez aprovado o projeto do condomínio de lotes, segundo o modelo de aplicação mista da legislação sugerido no tópico anterior, muda-se o foco para as regras da Lei 4.591/64.

Não haveria, pois, a caducidade da aprovação na hipótese de não registro em cartório no prazo de 180 dias.

Antes de examinarmos a etapa do registro do projeto em cartório, tenha em mente que o momento desse registro irá variar de acordo com a estratégia comercial do empreendimento.

Afinal, a incorporação não é obrigatória quando, no condomínio edilício “comum”, não se pretende vender unidades autônomas antes da conclusão das obras.

Logo, se o empreendedor só pretende alienar os “lotes” do condomínio depois de concluídas e averbadas as obras de infraestrutura, não será obrigatório o registro prévio da incorporação.

Como se formará, então, o condomínio? Através da chamada instituição de condomínio, que se dá de acordo com os artigos 1.332 e seguintes do Código Civil:

 

Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:

I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns;

II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns;

III – o fim a que as unidades se destinam.

 

Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção.

Parágrafo único. Para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis.

 

Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará:

I – a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;

II – sua forma de administração;

III – a competência das assembléias, forma de sua convocação e quorum exigido para as deliberações;

IV – as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores;

V – o regimento interno.

§ 1º A convenção poderá ser feita por escritura pública ou por instrumento particular.

§ 2º São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.

 

Já falamos bastante sobre a convenção de condomínio e, como se pode ver do trecho transcrito acima, ela será o instrumento principal também do condomínio de lotes.

A instituição do condomínio, na prática, se dá por requerimento endereçado ao Cartório de Registro de Imóveis, acompanhado, dentre outros, do projeto aprovado, da convenção de condomínio, do memorial descritivo do empreendimento e dos quadros discriminativos das frações ideais.

Optando o empreendedor pela venda de lotes antes de concluídas as obras de infraestrutura, será necessário o registro de incorporação imobiliária, com a apresentação de todos os documentos previstos no artigo 32 da Lei 4.591/64.

Há quem entenda, faça-se a ressalva, que a etapa de registro do projeto de condomínio de lotes deve seguir o rito da Lei 6.766/79, com a apresentação de todos os documentos exigidos pelo artigo 18 desta última lei e, complementarmente, daqueles documentos indicados no artigo 32 da Lei de Incorporações.

Pela natureza do condomínio de lotes, e considerando que, no momento do registro, o cumprimento da legislação urbanística já terá sido avaliado no curso da aprovação do projeto, parece-nos exagerada a posição de aplicação simultânea e integral de ambas as leis.

A questão acabará sendo resolvida casuisticamente, de acordo com os Códigos de Normas estaduais e as leis municipais.

 

É possível a implantação de um condomínio de lotes em zona rural?

 

Se a Lei 6.766/79 somente admite o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica (artigo 3º), não existe vedação expressa, na Lei 4.591/64, de realização de incorporação imobiliária em zona rural.

Pelo contrário, o artigo 68 da Lei de Incorporações prevê expressamente a hipótese:

 

Art. 68. Os proprietários ou titulares de direito aquisitivo, sôbre as terras rurais ou os terrenos onde pretendam constituir ou mandar construir habitações isoladas para aliená-las antes de concluídas, mediante pagamento do preço a prazo, deverão, previamente, satisfazer às exigências constantes no art. 32, ficando sujeitos ao regime instituído nesta Lei para os incorporadores, no que lhes fôr aplicável.

 

Logo, a resposta à pergunta de ser ou não possível implantar um condomínio de lotes em zona rural dependerá (i) do que vier a prever a legislação municipal e, principalmente, (ii) da classificação do condomínio de lotes como uma espécie de parcelamento do solo, sujeito, portanto, a todas as regras da Lei 6.766/79, ou como um tipo de condomínio edilício sujeito ao processo de incorporação imobiliária.

Como defendemos a aplicação das normas da Lei de Incorporações ao condomínio de lotes, com regência apenas supletiva pela Lei 6.766/79, entendemos, então, que sim, o condomínio de lotes pode ser implantado em zona rural.

Ao contrário do loteamento, que gera, automaticamente, uma obrigação do Município de prestar serviços públicos e atender à demanda por equipamentos urbanos e comunitários, a característica do condomínio que mantém todas as áreas comuns sob propriedade e gestão dos condôminos permite que se crie um “núcleo urbano” em área rural sem que isso onere, necessariamente, o Poder Público.

Afinal, se os próprios condôminos estão dispostos a encontrar e custear soluções para fornecimento de energia, água, tratamento de esgoto, coleta de lixo, segurança, dentre outros, não parece haver argumento válido contra essa autonomia privada.

Não se poderá falar em crescimento desordenado da cidade, pois o condomínio não estará em área urbana, nem em ônus à sociedade, pois serão os próprios condôminos os responsáveis pela conservação das áreas internas e pelos serviços comuns.

Vale lembrar, aliás, que o Município poderá ser até beneficiado com a implantação do empreendimento se a lei municipal contiver previsão (que seria válida, sem dúvida) de transferência de áreas fora dos limites do empreendimento ao Município.  

Nós nos aprofundamos no tema em outro de nossos artigos: Condomínio de Lotes em área rural.

 

Incorporação Imobiliária - Lage e Portilho Jardim Advocacia e Consultoria

 

Conclusão  

 

condomínio de lotes veio para ficar, mas isso não significa que o ordenamento jurídico não precise passar, ainda, por uma significativa melhoria. 

Ao mesmo tempo em que a formalização do instituto pela Lei 13.465/2017 atendeu a uma necessidade antiga e generalizada do mercado imobiliário, muitas dúvidas de outrora ainda não foram sanadas e novas questões conceituais foram instaladas, dificultando o alcance de um consenso sobre a natureza jurídica e sobretudo sobre o correto processo de aprovação e registro do condomínio de lotes. 

Uma breve incursão à doutrina especializada mostra que persistem variadas e antagônicas interpretações acerca do enquadramento do condomínio de lotes como uma nova espécie de parcelamento do solo, sujeita preponderantemente às regras da Lei 6.766/79, ou como, de fato, um condomínio edilício, sujeito às regras da Lei 4.591/64. 

Essa divergência não é meramente teórica e precisa ser melhor desenvolvida, pois há diferenças substanciais no processo de registro de um loteamento e de uma incorporação

Da nossa parte, entendemos que, embora deva respeitar a legislação urbanística – essa é, aliás, uma expressa obrigação legal –, a aprovação e o registro do condomínio de lotes deve seguir o rito da Lei de Incorporações, que exige documentos mais adequados (memorial descritivo, convenção de condomínio e quadros da NBR 12.721) ao tipo de empreendimento. 

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*Imagens de Getty Images, no Canva Pro.

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