“Meu imóvel foi invadido. E agora?”
Infelizmente, essa pergunta é cada dia mais comum no Brasil.
Vivemos em uma sociedade muito desigual, não há dúvidas, e a Constituição Federal assegura, como um direito social, a moradia (artigo 6º).
Ao mesmo tempo, desde os primórdios do “descobrimento” do Brasil, o Estado se funda e se sustenta no sagrado direito de propriedade, que, vale dizer, é um dos pilares do sistema capitalista.
Por isso, sem nenhuma hierarquia, a Constituição também traz, como um direito fundamental, no caput do seu artigo 5º e em seus incisos XXII e XXIII, o direito à propriedade, que deverá ser exercido segundo sua função social. No direito imobiliário, a propriedade, como já dissertamos em outro artigo, se dá pela Escritura Pública lavrada em cartório.
Também estabelece, como princípio da ordem econômica (artigo 170), ou seja, algo que deve nortear todo a economia do país, a propriedade privada.
Quando esses dois direitos entram em conflito – conflito este muitas vezes acompanhado da prática de crimes –, o resultado é imprevisível e pode ser bastante demorado.
E nem sempre a lei é seguida à risca.
Hoje vamos contar os detalhes de nossa atuação na recuperação da posse de um imóvel invadido recentemente (em novembro de 2022) em Belo Horizonte.
Em seguida, analisaremos os aspectos legais envolvidos nesse tipo de situação para, ao final, responder à pergunta do título – Invasão de imóvel: o que fazer?
Índice
O caso
Embora as ações judiciais de natureza cível, salvo em situações especiais, sejam públicas, podendo seu conteúdo ser consultado por qualquer cidadão, para preservar a identidade das partes e representantes envolvidos na discussão judicial, não informaremos, neste texto, o número do processo.
O imóvel em questão é uma casa situada em Lourdes, um bairro de alta renda de Belo Horizonte, com um dos “metros quadrados” mais caros da cidade.
Seu então proprietário faleceu sem herdeiros necessários, deixando a totalidade do seu patrimônio (inclusive o imóvel), em testamento, para instituir uma fundação destinada a proporcionar assistência e tratamento adequado a pessoas carentes portadoras de deficiência intelectual.
É importante dizer que qualquer fundação, por sua própria natureza, não é destinada à obtenção de lucros ou ao exercício de qualquer atividade econômica, limitando-se suas finalidades, segundo o artigo 62 do Código Civil, a:
- assistência social;
- cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
- educação;
- saúde;
- segurança alimentar e nutricional;
- defesa, preservação, conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;
- pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos;
- promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos; ou
- atividades religiosas.
A fundação proprietária do imóvel se destina a prestar assistência social e, como qualquer outra, é fiscalizada e “velada”, nas palavras da lei (artigo 66 do Código Civil), pelo Ministério Público.
Por alguns anos, o imóvel foi utilizado como gerador de renda, locado a terceiros, até que a fundação, no seu melhor interesse, e como forma de levantar recursos mais significativos para a continuidade de suas atividades assistenciais, optou por celebrar com uma incorporadora, com aprovação e prévia anuência do Ministério Público, um contrato de permuta, por meio do qual o terreno no qual a casa se situa seria utilizado para a construção de um edifício residencial, com entrega de algumas unidades autônomas (apartamentos) à fundação, além de um valor considerável em dinheiro.
A casa, naturalmente, seria demolida para dar lugar à construção do prédio.
Quando, todavia, o projeto arquitetônico do empreendimento estava em vias de ser aprovado pelo município, a casa foi abruptamente invadida, inicialmente por duas pessoas, na manhã de um sábado do mês de novembro.
Ao receber a ligação do cliente por volta das 13h do fatídico dia, o advogado que vos escreve compareceu imediatamente ao local, testemunhando a chegada de várias outras pessoas, bem como de sucessivos carretos carregados de seus pertences.
Toda a ação foi fotografada e gravada, o que, na solução do caso, foi essencial.
O modus operandi
Nos dias que se seguiram à invasão, apurou-se que as pessoas à frente tinham sido despejadas de outro local próximo pouco mais de 15 dias antes.
A ação de reintegração de posse que resultou nesse despejo anterior foi localizada e, lá, o método utilizado pelos invasores foi bastante similar. E qual é esse modus operandi, pelo menos o que vem sendo adotado em Belo Horizonte?
- Alguns dias antes da invasão, poucas pessoas (no caso, duas) comparecem à Defensoria Pública e alegam, falsamente, que já estariam ocupando um “imóvel abandonado” em algum local da cidade.
- Ato contínuo e, no caso em que nosso escritório atuou, sem conferir a veracidade da alegação, a Defensoria Pública emite uma “Declaração de Assistência” com o seguinte teor:
A imagem anterior é do próprio caso narrado. Observe que o atendimento foi realizado no dia 22/11, uma terça-feira e, na ocasião, os invasores afirmaram que estavam ocupando o imóvel há aproximadamente 3 semanas. Era mentira, e o fato não fora verificado antes da liberação dessa “Declaração de Assistência”.
Para piorar, o documento expedido pela Defensoria Pública ainda continha outra afirmação inverídica, no sentido de que qualquer medida tendente a promover a desocupação do local deveria ser precedida de ordem judicial. Veremos mais à frente neste artigo o porquê dessa afirmação não ser verdadeira.
No sábado (dia 26) dessa mesma semana, contudo, o imóvel foi efetivamente invadido.
A ausência de ação da Polícia Militar
Com a invasão, vários vizinhos entraram em contato com representantes da fundação para alertá-los.
A Polícia Militar foi imediatamente acionada e enviou, inicialmente, uma viatura ao local.
Quando a primeira viatura chegou, só havia duas pessoas dentro do imóvel, mas, ao solicitar que elas desocupassem o bem, foi apresentada aos policiais militares a mencionada “Declaração de Assistência”.
Não se sabe se por algum “protocolo interno” da instituição ou se por um mau julgamento dos policiais, a “Declaração de Assistência” foi aceita como uma espécie de salvo-conduto para a continuidade da invasão, e a Polícia Militar não agiu.
Quando, pouco tempos depois, começaram a chegar novos invasores e seus pertences, a polícia foi novamente acionada, na esperança de que, presenciando o ato, impedisse a invasão. O resultado, contudo, não foi diferente.
A discussão do caso pelos magistrados de plantão
Ainda no sábado foi ajuizada, então, a ação de reintegração de posse, com pedido liminar, para tentar evitar o agravamento do prejuízo.
No domingo pela manhã, esta foi a decisão da magistrada de plantão:
Invocando o fato de que o imóvel não se encontra habitado (e de fato não estava porque estava aguardando a aprovação do projeto arquitetônico para ser demolido), o Judiciário, mesmo se tratando de uma medida de urgência, que poderia ter resolvido o problema antes de seu agravamento, inicialmente optou por não atuar.
No mesmo dia da prolação da decisão (domingo), foi interposto o pertinente recurso, ainda no plantão, para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
A (inexistente) falta de urgência foi, mais uma vez, alegada para não se analisar o pedido de liminar, como se fosse natural e aceitável a invasão de um imóvel apenas por ele estar inabitado.
A decisão liminar
Finalmente, na terça-feira, dois dias depois, o juiz titular responsável pelo processo aplicou a lei (que será examinada logo mais) e concedeu a liminar para determinar a imediata desocupação do imóvel.
A Defensoria Pública, já monitorando o desenrolar da ação judicial, interpôs recurso junto ao Tribunal de Justiça para tentar reverter a decisão liminar, sem sucesso.
Vale transcrever um trecho da decisão do TJMG que, corretamente, aprofundou-se na análise do caso e teve a sensibilidade de reconhecer que, por trás do mantra da “proteção do vulnerável” e do “direito à moradia”, estava a ocorrer efetivamente uma ação orquestrada e premeditada de violação do direito de propriedade:
“Mesa de diálogo”
Concedida a liminar de reintegração de posse, seguiram-se, então, os trâmites para expedição e cumprimento do mandado por oficial de justiça.
Na primeira tentativa de cumprimento do mandado, pouquíssimo tempo depois da chegada do oficial de justiça, já se encontravam no local representantes da Defensoria Pública, representantes da Prefeitura de Belo Horizonte, uma vereadora e sua equipe de assessores (e aqui cabe a pergunta: o que uma integrante do Poder Legislativo, cuja função é propor e votar leis, representando o povo, estava fazendo ali?), integrantes de movimentos sociais e policiais militares.
Houve resistência ao cumprimento da ordem de desocupação e, para evitar o uso da força, considerando a presença de crianças no imóvel, acertou-se a realização, na semana subsequente, última antes do recesso anual do Poder Judiciário, de uma “mesa de diálogo”, reunião virtual com participação de dezenas de pessoas, integrantes de órgãos distintos (dentre eles Município, Estado, Polícia Militar, Poder Legislativo, Ministério Público), em que se buscava uma “solução amigável”.
Em mais de 3 horas de reunião, ao alvedrio da lei e de uma ordem judicial já expedida, questionada e mantida pelo Tribunal, praticamente todos os presentes defendiam que fosse concedido um prazo adicional de 30 dias para que os invasores deixassem o imóvel.
O representante da fundação, naturalmente, não aceitou, porque naquele momento estava claro que havia uma tentativa de se ganhar tempo, sem qualquer garantia de que, ao final do prazo, fosse efetivamente acontecer uma desocupação voluntária.
Cumprimento do mandado de reintegração de posse
O mandado de reintegração de posse foi, enfim, cumprido no dia 16 de dezembro, 20 dias depois da invasão.
Aqueles que estavam defendendo a prorrogação da invasão, notadamente os integrantes da Defensoria Pública, entenderam, enfim, que não havia alternativa senão respeitar a ordem judicial.
Com os invasores sendo orientados pela Defensoria Pública a deixar o imóvel voluntariamente, a desocupação ocorreu sem a necessidade de uso de força policial e a fundação foi reintegrada na posse de seu imóvel.
Da invasão à desocupação, 20 dias. E isso só foi possível porque as medidas foram tomadas de imediato, antes que a situação se agravasse ainda mais.
Portanto, não “durma no ponto”!
Se, como dito na introdução deste artigo, a moradia é, inquestionavelmente, um direito social constitucionalmente assegurado, dessa mesma fonte bebe o direito à propriedade privada, sem o qual seria impossível a sobrevivência do capitalismo.
No entanto, é notável que, com o advento da Constituição Federal de 1988, o direito de propriedade passou a ser enxergado não mais de forma absoluta, como o era na vigência do Código Civil de 1916, mas condicionado ao cumprimento da chamada função social.
Foge ao objetivo deste texto o aprofundamento nos diversos espectros do que pode ser entendido por função social da propriedade, mas vale o registro de que os requisitos para aferição do cumprimento dessa função social variam de acordo com a natureza do imóvel (urbano ou rural).
Para melhor exame, confira nosso artigo sobre o Estatuto da Cidade, no qual falamos sobre a função social da propriedade urbana, e sobre o Imóvel Rural, que aborda a função social da propriedade rural.
Seja o bem urbano ou rural, o eventual descumprimento da função social da propriedade é punível por medidas previstas em lei, que vão desde a edificação compulsória (para imóveis urbanos) até a desapropriação para fins de reforma agrária (para imóveis rurais).
Nenhum dispositivo legal, todavia, autoriza ou valida a invasão de imóvel de forma arbitrária e clandestina, esteja ele cumprindo, ou não, a sua função social.
O embate se instala quando a busca por moradia resulta na usurpação forçada da propriedade alheia.
Alheios ao fato de que moradia, assim como saúde, segurança, educação, previdência social e os demais direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal são deveres do ESTADO, e não do particular (individualmente considerado), aqueles que defendem as “ocupações” argumentam que os imóveis invadidos, uma vez ocupados, passam a cumprir sua função social.
Ignoram, todavia, não só as condições extremamente precárias em que as pessoas que integram essas ocupações passam a viver (no caso narrado no início do artigo, em uma única casa, ao final, estavam vivendo mais de 20 pessoas, dentre elas várias crianças; na reintegração da poses, foram encontradas várias garrafas de bebidas alcóolicas, urina no chão em vários ambientes, “pinos de cocaína” vazios, dentre outros), mas especialmente o fato de que não cabe ao particular executar políticas públicas.
A polêmica decisão do STF na ADPF 828
Nesse contexto, causou enorme alvoroço no mercado imobiliário a decisão proferida em 02/11/2022 pelo Ministro Luís Roberto Barroso na “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)” nº 828.
Em linhas gerais, ao determinar o início de um período de transição para o retorno do cumprimento, em território nacional, das ordens de despejo e desocupação, então suspensas por força da pandemia de COVID-19, o STF, por maioria, impôs algumas condições preliminares para que pudessem ser realizadas desocupações coletivas.
Os mais apressados começaram a anunciar, desesperadamente, o “fim da propriedade privada no Brasil”, mas, na prática, o que a decisão estabeleceu foram algumas medidas destinadas a facilitar o cumprimento das ordens, ponderando e protegendo direitos antagônicos de todos os envolvidos nesses conflitos.
Como nosso artigo subsequente será, justamente, sobre essa decisão, deixaremos os detalhes para a próxima semana.
Desforço imediato e força proporcional
Começando, agora, a análise mais direta da legislação aplicável aos conflitos possessórios, vejamos o que determina o artigo 1.210 do Código Civil:
Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
§ 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
§ 2º Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.
Turbação e esbulho, para que fique claro desde já, são, respectivamente, (i) uma tentativa frustrada de tomada da posse de um imóvel e (ii) a efetiva usurpação da posse de imóvel.
Trata-se de uma das raríssimas hipóteses da chamada autotutela no Direito brasileiro, em que o cidadão é autorizado a “fazer justiça com suas próprias mãos”.
A regra geral é que a justiça e a determinação das soluções finais de conflitos sejam feitas pelo Estado (representado pelo Poder Judiciário) e o fato de o legislador ter garantido ao particular, como uma rara exceção, a autotutela para a defesa de sua posse só demonstra o quão relevante é esse direito.
O que se deve destacar, quanto à redação do § 1º do artigo 1.210 do Código Civil, é que o exercício da autotutela só será legalmente admitido quando revestido de duas qualificações: (i) ser executado “logo”, ou seja, imediatamente quando do conhecimento do fato (ameaça ou efetiva transgressão da posse por terceiros) e (ii) ser proporcional ao ato combatido, ou seja à defesa da posse.
Logo, se você teve seu imóvel invadido, tomou conhecimento do fato hoje, e esperou, por exemplo, dois dias para tomar alguma medida, já não será possível exercer a autotutela.
Da mesma forma, ainda que você tenha agido imediatamente, se vier a se exceder nos atos de defesa da posse, poderá ser responsabilizado civil e até criminalmente.
Pensemos em um exemplo para facilitar o entendimento: você tomou conhecimento de que uma família composta por um casal e duas crianças adentrou o quintal de seu imóvel com clara intenção de ocupá-lo.
Imediatamente, você se dirige ao local, aciona a polícia militar e pede aos invasores para deixar o perímetro do imóvel.
Enquanto as negociações estão em curso, você, impaciente, saca uma arma e atira em direção ao interior do imóvel.
Ainda que o tiro não atinja ninguém, é muito fácil perceber que a sua conduta terá sido desproporcional no contexto da situação, claramente excedendo o “desforço imediato e proporcional” previsto em lei para que a autotutela seja validada.
Em outro cenário, imagine-se que você é proprietário de uma fazenda produtiva, que possui, dentre seus funcionários, alguns vigilantes armados.
Em determinado dia, inesperadamente, dezenas de pessoas, algumas portando armas brancas e de fogo, derrubam uma das cercas da fazenda e começam a invadir o perímetro do imóvel.
Os vigilantes, imediatamente, atiram para o alto, com a intenção de repelir a agressão.
O ato terá sido desproporcional no contexto? Parece-nos que não.
A análise, portanto, do que é o desforço indispensável à manutenção ou restituição da posse será casuística.
Se algo pode ser dito a priori é que o proprietário e/ou o possuidor pode e deve exercer o seu direito de autotutela sempre que vier a ser ameaçado ou expropriado de sua posse, mas deve tomar o cuidado de o fazê-lo imediatamente e com o devido temperamento.
Afinal, deixar a resolução da questão para o Poder Judiciário representará, na maioria das vezes, numa espera de semanas, senão meses/anos, podendo-se chegar ao extremo (não raro, infelizmente) de irreversibilidade da situação diante da quantidade de invasores.
Propriedade x posse
Para entender a posse, que é o direito efetivamente protegido pelas ações que estudaremos neste artigo, primeiro precisamos examinar em que consiste o direito constitucional à propriedade privada.
Ele é detalhado, indiretamente, no artigo 1.228 do Código Civil:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Pode parecer estranho, mas nem a Constituição Federal, nem o Código Civil definem o direito de propriedade em si, talvez por esse conceito já estar tão arraigado e absorvido pelo senso comum a ponto de dispensar explicações.
Mas o Código Civil, como visto acima, define os direitos que aquele que detém a propriedade tem à sua disposição.
A propriedade imobiliária, segundo o sistema registral vigente no Brasil, é a relação de domínio, formalizada por um registro (em transcrição ou matrícula), entre uma ou mais pessoas (física ou jurídica) e um bem imóvel, relação essa que possui caráter erga omnes, ou seja, deve ser respeitada e é oponível em face de todos os outros que não sejam titulares do direito.
Associa-se ao direito de propriedade, para além da exclusividade de poder em relação àquele bem especificamente considerado, os direitos de (i) usar, (ii) gozar, (iii) dispor e (iv) reivindicar o bem contra quem, eventualmente, esteja ocupando-o injustamente ou sem autorização.
Não é difícil entender em que consiste cada um desses verbos: o uso é uma relação direta de posse com o imóvel, ou seja, a efetiva utilização daquele bem por seu proprietário (por exemplo, o dono de um apartamento que nele reside); o gozo se relaciona com a faculdade de fruir da coisa, ou seja, obter frutos, que são aqueles bens acessórios que podem ser extraídos do bem principal, sem prejudicá-lo, como colheitas (em caso de imóvel rural) e aluguéis (locação residencial); a disposição é o poder que o proprietário tem de dar a destinação que lhe pareça mais conveniente à coisa (inclusive vendê-la ou dá-la em garantia), desde que respeitados os limites legais, como a função social da propriedade; e a reivindicação é a possibilidade de exigir, de qualquer terceiro que esteja injustamente possuindo o imóvel, que deixe de ocupá-lo.
Como é claro, alguns desses direitos associados à propriedade podem ser transferidos a terceiros.
Se decido, então, alugar meu apartamento ou dá-lo a alguém em comodato, estou, temporariamente, renunciando ao meu direito de usar a coisa, direito este que é transferido, por contrato, ao terceiro.
Nessa situação, a posse direta (que diferenciaremos, a seguir, da posse indireta e da detenção) passa a ser exercida por alguém que não é proprietário do imóvel e esse alguém, para fins de defesa da posse, terá os mesmos direitos atribuídos ao proprietário de não ser turbado, esbulhado ou ameaçado em sua posse.
A posse, portanto, é a manifestação física, a exteriorização, do direito de propriedade. E é assim que é definida pelo artigo 1.204 do Código Civil:
Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.
Aqui se percebe que não é apenas o direito de uso que pode ser transferido a terceiros, mas também os de gozar e de dispor da coisa.
Veja que como proprietário eu posso, por exemplo, por um contrato de comodato, autorizar que o beneficiário alugue o imóvel a terceiros e obtenha os frutos (aluguéis) em seu próprio nome. Também posso permitir que o mesmo comodatário exerça qualquer atividade no bem (sem definir contratualmente a finalidade), garantindo-lhe a livre disposição.
O único direito associado à propriedade que, a nosso sentir, não é passível de exercício por terceiros é o de reivindicar a coisa em nome de terceiros, porque essa reivindicação, bastante específica, é atribuída àquele que é proprietário, mas nunca teve posse.
Posse direta x indireta e detenção
Se, como visto no tópico anterior, a posse é uma manifestação física da propriedade, que pode ser exercida tanto pelo proprietário em si, quanto por terceiros, é importante diferenciar o grau de exercício dessa posse.
A posse será direta quando houver uma relação imediata de uso de um imóvel por aquele possuidor.
Quando, por força de um contrato, o proprietário transferir a um terceiro esse direito de uso, ou seja, a posse direta, ocorrerá um fenômeno chamado desdobramento da posse, por meio do qual o referido proprietário passa a exercer uma posse indireta sobre o bem; nesse cenário, o proprietário não terá a faculdade de uso do imóvel, mas manterá para si os direitos de gozo, percebendo – ou não, a depender da espécie de contrato – frutos, disposição e reivindicação.
Citemos dois exemplos clássicos de desdobramento da posse para facilitar o entendimento: (i) na locação, o proprietário cede a posse direta ao locatário, mas mantém para si a posse indireta, percebendo frutos (aluguéis) com a disponibilização do imóvel ao terceiro; e (ii) na alienação fiduciária em garantia, aquele que tomou o crédito e ofereceu o imóvel em garantia é o possuidor direto do imóvel, enquanto o credor passa a ser o possuidor indireto.
Veja que, quando falamos de posse direta ou indireta, em ambos os casos há o exercício de algum poder (uso ou gozo) sobre o imóvel em nome próprio.
Quanto, entretanto, alguém exerce alguma manifestação física de posse sobre um imóvel em nome de um terceiro, haverá a chamada detenção.
É o caso, por exemplo, do caseiro que mora em uma residência no perímetro de uma fazenda e cuida da “sede” em nome do proprietário. Há, aí, uma relação de trabalho e uma mera permissão, por parte do dono da coisa, de uso pelo terceiro enquanto for vigente o vínculo jurídico (contrato de trabalho).
Esse caseiro exercerá mera detenção do imóvel principal e não será visto, juridicamente, como possuidor. Tal distinção é relevante, especialmente, para fins de eventual contagem de prazo para fins de usucapião porque, na detenção, não há possibilidade de usucapir.
Isso fica claro no texto do artigo 1.198 do Código Civil:
Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.
Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário.
As ações possessórias
Como posse e propriedade não são a mesma coisa, existem ações judiciais específicas para defesa de uma e de outra.
As ações que discutem propriedade ou qualquer outro direito real sobre o imóvel podem, a depender de seu resultado, alterar significativamente o direito em si.
São as chamadas ações reais, cujo melhor exemplo é a ação de usucapião que, se julgada procedente, criará um novo direito de propriedade para aquele(s) autor(es).
Também podemos citar a ação demarcatória,as ações em que se pede o reconhecimento de um direito de usufruto, uso ou habitação, a ação reivindicatória (sobre a qual falamos anteriormente), bem como aquelas relacionadas a algum direito de garantia (hipoteca, por exemplo).
Já as ações possessórias discutem, exclusivamente, a defesa da posse de um determinado imóvel contra atos ou ameaças de terceiros. É vedada, inclusive, a discussão de domínio (propriedade) nas ações possessórias, a teor do artigo 557 do Código de Processo Civil.
Existem, atualmente, três espécies de ações possessórias, a saber:
- Ação de manutenção de posse;
- Ação de reintegração de posse; e
- Interdito proibitório.
Todas elas se fundam, materialmente, no artigo 1.210 do Código Civil, já transcrito neste artigo, que garante ao possuidor o direito de ser mantido, restituído ou segurado em sua posse, quando for o caso, respectivamente, de turbação, esbulho ou ameaça.
Vejamos, primeiro, para que serve cada uma delas para, em seguida, examinar as características que lhes são comuns.
Manutenção de posse
A ação de manutenção de posse se destina, como o nome indica, a manter o autor na posse de um imóvel, sempre que houver ocorrido uma tentativa malsucedida de usurpação dessa posse por parte de terceiros.
Difere-se do interdito proibitório justamente porque, neste, não há ainda uma tentativa concreta, pelo terceiro, de usurpação da posse, mas apenas uma fundada ameaça.
Se, portanto, você sofreu a chamada turbação da sua posse, a medida correta a se adotar é a ação de manutenção de posse.
Um exemplo prático dessa situação é quando há uma tentativa de invasão, sem sucesso, seja porque você conseguiu repelir a injusta agressão com desforço imediato e proporcional, nos termos do já analisado § 1º do artigo 1.210 do Código Civil, seja porque o pretenso invasor abandonou o ato antes de sua conclusão.
É óbvio que, se você foi vítima de uma tentativa de invasão, é bastante provável que uma nova incursão ocorra em breve, de forma que é justificável a ação de manutenção de posse para já se obter uma ordem judicial que impeça, dificulte ou no mínimo desmotive (porque o descumprimento da ordem estará vinculado, provavelmente, à aplicação de uma multa) novas tentativas.
O pedido principal, portanto, na ação de manutenção de posse é para que o(s) réu(s) não realize novas tentativas de invasão, garantindo-se ao autor o livre e pleno exercício de sua posse.
Reintegração de posse
A diferença da ação de reintegração de posse em relação à ação de manutenção de posse é que, no primeiro caso, a posse foi efetivamente perdida pelo autor, ou seja, a tentativa de invasão foi bem-sucedida.
A condição jurídica de perda da posse é verificada no momento em que aquele autor não mais detém poder sobre o bem, a teor dos artigos 1.223 e 1.224 do Código Civil:
Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196.
Art. 1.224. Só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido.
O destaque ao artigo 1.224 foi dado porque, na ação de reintegração de posse, é essencial provar, para se conseguir a tão desejada e necessária liminar, que o autor era possuidor do imóvel antes da invasão e veio a perder, em definitivo, tal posse.
Assim, de acordo com o citado dispositivo, se o autor/possuidor não presenciou a prática do esbulho, ou seja, a invasão em si, a sua posse só será considerada perdida quando ele se “abster de retornar a coisa” – e observe que a lei não define o que é essa “abstenção” – ou quando, tentando retomá-la, é “violentamente repelido”.
Essa análise será feita, invariavelmente, caso a caso.
Naquele que narramos no início deste artigo, a perda da posse foi demasiadamente óbvia, porque, em poucas horas do início da invasão, já havia dezenas de pessoas dentro do local.
Não era recomendável, tampouco prudente, tentar retomar a posse à força, mesmo dentro da janela de tempo do “desforço imediato e proporcional”, porque o risco à integridade física das pessoas era alto, principalmente diante da omissão da polícia militar.
Houve, portanto, a “abstenção” indicada na lei em virtude da falta de mecanismos possíveis para recuperação da posse.
O pedido principal na ação de reintegração de posse, é claro, é a restituição do autor no poder de posse direta e pacífica sobre o bem, em detrimento dos invasores.
Além de se provar a posse anterior à invasão (como na manutenção), deve-se demonstrar a perda da posse.
Interdito proibitório
Finalmente, tem-se a ação voltada a proteger o autor de ameaças à sua posse.
A lei fala, como se viu, em segurar o possuidor contra violência iminente, se ele tiver justo receio de ser molestado.
Mais uma vez, trata-se de um conceito jurídico aberto, indeterminado, porque a lei não define o que será considerado “violência iminente” nem “justo receio”.
Na prática, a avaliação da presença desses requisitos ficará a cargo do juiz, mas podemos afirmar que não é qualquer situação que autorizará o manejo da ação de interdito proibitório.
“Ouvir dizer” que alguém está planejando invadir seu imóvel, sem nenhuma prova concreta nesse sentido, não caracterizará uma violência iminente nem será fundamento para se obter um interdito.
Por outro lado, se você recebeu, por exemplo, fotos de grupos de pessoas “rondando” seu imóvel, e tais pessoas forem reconhecidas localmente como invasoras recalcitrantes, ficará mais fácil de provar o justo receio.
Para que seja efetiva a ordem de interdito proibitório, ela deve vir acompanhada, naturalmente, por uma pesada multa em caso de descumprimento pelo réu. É a previsão, aliás, do artigo 567 do Código de Processo Civil:
Art. 567. O possuidor direto ou indireto que tenha justo receio de ser molestado na posse poderá requerer ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório em que se comine ao réu determinada pena pecuniária caso transgrida o preceito.
O pedido principal, portanto, é a proibição da prática de qualquer ato concreto destinado a turbar ou esbulhar a posse do autor, sob pena de multa.
Deve-se provar a ameaça concreta à posse, seja por meio de mensagens, vídeos, fotos, seja por meio da demonstração de já ter havido atos preparatórios (como a retirada de uma cerca, por exemplo).
Fungibilidade da ação possessória: o que é isso?
Como as situações que envolvem posse podem ser transitórias e até de certa forma confusas, não é raro que advogados elejam e distribuam a ação errada.
Ainda que a ação esteja correta, também pode acontecer de a prova não estar tão clara, dificultando o enquadramento do pedido em uma ou outra espécie.
O legislador não foi alheio a esse cenário e optou por endereçá-lo no artigo 554 do Código de Processo Civil:
Art. 554. A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados.
Isso nada mais é do que o princípio da fungibilidade das ações possessórias, a determinar que eventual equívoco na escolha do procedimento correto seja suprido, pelo juiz, de acordo com as provas contidas em determinada ação.
Logo, se ao ajuizar a ação eu entendi que a posse estava perdida e as provas que anexo ao processo levam o juiz a entender que isso não ocorreu, ele poderá, por exemplo, ordenar a minha manutenção na posse do bem ao invés da minha reintegração.
Requisitos e pedidos comuns às três ações possessórias
Comum a todas as três ações possessórias são (i) os requisitos para a procedência do pedido; (ii) os possíveis pedidos cumulativos; e (iii) o regramento em relação às situações em que figure no polo passivo um grande número de pessoas (as conhecidas “ocupações coletivas”).
Começando pelos requisitos, nos termos do artigo 561 do Código de Processo Civil:
Art. 561. Incumbe ao autor provar:
I – a sua posse;
II – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;
III – a data da turbação ou do esbulho;
IV – a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, ou a perda da posse, na ação de reintegração.
Embora tal artigo se insira na seção que trata, especificamente, das ações de manutenção e reintegração de posse, ele também é aplicável, por força do artigo 568 do mesmo diploma legal, ao interdito proibitório, com as devidas adaptações.
São, logo, quatro requisitos para que uma ação possessória possa ser ajuizada e tenha sucesso.
O primeiro, já muito falado nos tópicos anteriores, é a prova da posse do autor, ou seja, a posse anterior ao evento (ou ameaça) turbação/esbulho.
É obrigação do autor demonstrar a sua legitimidade para a ação possessória, ou seja, a sua posse anterior, afetada por um ato (ou ameaça) de terceiro(s).
Em segunda lugar, deve-se demonstrar, segundo a espécie da ação possessória, que houve, efetivamente, uma turbação, esbulho ou fundada ameaça praticada pelo(s) réu(s).
A demonstração da data em que o evento que afetou a posse ocorreu é o terceiro requisito, porque esse marco é relevante para se definir o rito da ação, se será especial (ou seja, se adotará o caminho mais célere das ações possessórias, com maior probabilidade de uma ordem liminar) ou se será comum.
E o que define qual será o rito? O tempo decorrido entre o evento (turbação, esbulho ou ameaça) e o ajuizamento da ação. Vê-se, já aqui, a importância do tempo de reação para o resultado de uma ação possessória.
Com efeito, se entre a turbação/esbulho/ameaça e o ajuizamento da ação não houver passado um ano e um dia, será seguido o rito especial. Do contrário, a ação observará o rito comum, mais longo e com menor probabilidade (embora ainda possível) de obtenção de uma liminar.
Finalmente, o quarto e último requisito da ação possessória, este válido apenas para as ações de manutenção e reintegração, é a demonstração da continuação da posse, em caso de turbação, e da perda da posse, em caso de esbulho.
No interdito proibitório, além dos três primeiros requisitos, deve-se demonstrar, como já visto, o justo receio do autor de ser molestado em sua posse por turbação/esbulho iminente.
Superados os requisitos das ações, observe que em todas elas o autor poderá, para além de formular o pedido principal (manutenção, reintegração ou “seguro” contra ameaça), segundo o artigo 555 do Código de Processo Civil, pedir ainda (i) condenação do(s) réu(s) em perdas e danos; (ii) indenização dos frutos que deixou de receber durante a interferência indevida em sua posse; (iii) a imposição de medida necessária e adequada para evitar nova turbação ou esbulho e cumprir-se a tutela provisória ou final (leia-se: a previsão de multa em caso de nova transgressão ou, no interdito proibitório, de realização da ameaça).
O terceiro ponto comum às três ações possessórias é o regramento para as “ocupações coletivas”, que analisaremos nos dois tópicos seguintes.
Citação coletiva
O já citado artigo 554 do Código de Processo Civil, que instrumentaliza a fungibilidade das ações possessórias, traz consigo três parágrafos, com o seguinte teor:
§ 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.
§ 2º Para fim da citação pessoal prevista no § 1º, o oficial de justiça procurará os ocupantes no local por uma vez, citando-se por edital os que não forem encontrados.
§ 3º O juiz deverá determinar que se dê ampla publicidade da existência da ação prevista no § 1º e dos respectivos prazos processuais, podendo, para tanto, valer-se de anúncios em jornal ou rádio locais, da publicação de cartazes na região do conflito e de outros meios.
Como no caso em que narramos no início deste artigo, é bastante comum que as invasões de imóveis, sejam elas urbanas ou rurais, comecem com um número reduzido de pessoas e tomem grande proporção num intervalo muito curto de tempo, podendo ter milhares de invasores em poucos dias.
Naturalmente, é virtualmente impossível, numa ocupação maior, obter os dados de qualificação (para informação na petição inicial da ação possessória) de todos os invasores, não só porque há uma situação de transitoriedade constante, com uns saindo e outros chegando, mas porque, uma vez invadido o imóvel, o autor deixa de ter a posse e o controle do que acontece ou de quem está no local.
Andou bem a legislação processual, portanto, em permitir que todos aqueles que forem encontrados na data do cumprimento do mandado sejam citados pessoalmente, com os demais podendo ser citados, imediatamente, por edital.
A citação por edital é uma comunicação ampla, feita por publicação no diário oficial do próprio tribunal e/ou, a critério do juiz, em jornal de grande circulação local, que dá ao réu ciência da existência daquela determinada ação e concede a eles um prazo de até 60 (sessenta) dias para que ele compareça espontaneamente aos autos para se dar por citado, iniciando-se, então, seu prazo de defesa.
Decorrido o prazo de dilação concedido no edital sem que o réu apareça, é nomeado um curador especial (normalmente a Defensoria Pública ou advogado dativo) para defender seus interesses e inicia-se o prazo para apresentação da defesa.
Em regra, a citação por edital só é concedida pelo juiz depois de tentados todos os demais meios, ou quando o oficial de justiça certifica que o réu se encontra em “local incerto e não sabido”.
Por isso, permitir nas ocupações coletivas que a citação se dê por edital independentemente de qualquer outra diligência anterior é uma prerrogativa bastante interessante, que, no contexto, faz todo o sentido.
A participação do MP e da Defensoria Pública
Além da citação por edital, nas ocupações coletivas, como disposto na parte final do § 1º do artigo 554 do Código de Processo Civil, a participação do Ministério Público, como fiscal da lei, será obrigatória e a Defensoria Pública, quando houver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, deverá ser intimada.
Note que essa intimação, tanto do Ministério Público quanto da Defensoria Pública, se dará no momento da citação dos réus, sendo falaciosa a costumeira alegação de que o juiz não pode analisar o pedido de liminar antes da intimação/manifestação desses dois órgãos.
Não é, definitivamente, o que a lei prevê, já que, como veremos no tópico seguinte, a liminar é quase uma decorrência lógica da ação possessória ajuizada dentro do “ano e dia”.
A função do Ministério Público, nesses litígios, não é proteger os invasores, mas garantir que a lei esteja sendo corretamente aplicada pelo juiz.
Já a Defensoria Pública, quando for o caso de sua atuação, defenderá, sim, os interesses dos invasores, certamente opondo-se, como ocorrido no caso que analisamos, a qualquer tentativa de desocupação, ainda que esteja claro que o imóvel cumpria sua função social no momento da invasão.
A dificuldade talvez seja aferir, de antemão, se aqueles réus são pessoas em “situação de hipossuficiência econômica”. Isso não é presumível, até porque muitos dos invasores não pessoas realmente necessitadas.
No caso que inaugura este artigo, alguns deles chegaram em carros particulares (motoristas de aplicativo). Outros participaram da “mesa de diálogo” com seus próprios smartphones, habilitados para uso de internet.
Assim, cabe à Defensoria, se for o caso, demonstrar efetivamente que aquelas pessoas são merecedoras do benefício de defesa gratuita. O simples fato de terem invadido um imóvel não é suficiente para tanto.
A liminar nas ações possessórias
Na ação possessória “nova”, qual seja, aquela ajuizada dentro de ano e dia da ocorrência da turbação/esbulho/ameaça, a ordem liminar não é uma faculdade sujeita ao arbítrio do juiz, mas uma obrigação prevista em lei, desde que a petição inicial esteja correta e suficientemente instruída.
É o que determina o artigo 562 do Código de Processo Civil:
Art. 562. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração, caso contrário, determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando-se o réu para comparecer à audiência que for designada.
Parágrafo único. Contra as pessoas jurídicas de direito público não será deferida a manutenção ou a reintegração liminar sem prévia audiência dos respectivos representantes judiciais.
Observe, pela relevância, o verbo do caput: o juiz deferirá, mandamental, não facultativo, a expedição do mandado liminar de manutenção ou reintegração de posse.
Não cabe, nas ações possessórias, discricionariedade do julgador acerca da conveniência, ou não, de se deferir uma ordem liminar.
Não se exigem, nas ações possessórias, a prova dos requisitos gerais das tutelas de urgência, quais sejam, (i) a probabilidade do direito e (ii) o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
Afinal, é presumido o perigo de dano quando uma posse é usurpada.
O único requisito, pois, exigido para a expedição do mandado liminar de manutenção ou reintegração de posse é a correta e suficiente instrução da petição inicial.
E o que isso quer dizer? Que o seu advogado deverá demonstrar, na redação do seu “pleito” possessório, que todos aqueles requisitos do artigo 561 do Código de Processo Civil, já analisados, encontram-se presentes no caso.
Se a petição inicial estiver em ordem, não cabe ao juiz fazer análise valorativa, mas simplesmente deferir, sem maiores delongas, a expedição do mandado liminar.
É por isso que se afirmou que a liminar, nas ações possessórias, é praticamente uma decorrência lógica, presente na quase totalidade dos casos.
No entanto, se o juiz entender que a petição inicial não está corretamente instruída, ele poderá designar uma audiência de justificação, com citação do(s) reú(s), para que o autor justifique o seu pedido (artigo 562 do CPC).
Se a justificação for considerada suficiente, será expedido, de imediato, o mandado liminar de manutenção ou reintegração (artigo 563 do CPC).
Do contrário, a ação prosseguirá com a abertura de prazo de contestação para o(s) réu(s) (artigo 564 do CPC).
Por último, precisamos afastar outra falácia comum, inclusive relacionada ao julgamento da ADPF 828 pelo STF, no sentido de que seria obrigatória a prévia realização de audiência de mediação para a concessão de liminar em qualquer litígio coletivo.
A falácia é afastada com a simples leitura do artigo 565 do Código de Processo Civil:
Art. 565. No litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 (trinta) dias, que observará o disposto nos §§ 2º e 4º.
§ 1º Concedida a liminar, se essa não for executada no prazo de 1 (um) ano, a contar da data de distribuição, caberá ao juiz designar audiência de mediação, nos termos dos §§ 2º a 4º deste artigo.
§ 2º O Ministério Público será intimado para comparecer à audiência, e a Defensoria Pública será intimada sempre que houver parte beneficiária de gratuidade da justiça.
§ 3º O juiz poderá comparecer à área objeto do litígio quando sua presença se fizer necessária à efetivação da tutela jurisdicional.
§ 4º Os órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal e de Município onde se situe a área objeto do litígio poderão ser intimados para a audiência, a fim de se manifestarem sobre seu interesse no processo e sobre a existência de possibilidade de solução para o conflito possessório.
§ 5º Aplica-se o disposto neste artigo ao litígio sobre propriedade de imóvel.
Mais uma vez, percebe-se a importância da pronta reação do proprietário à invasão de seu imóvel.
Deveras, o que o artigo acima transcrito prevê é uma espécie de punição ao proprietário dormente.
Se, nos litígios coletivos (ou seja, aquele com grande número de pessoas no polo passivo), a ação só vier a ser ajuizada depois de decorrido um ano e um dia da data da turbação/esbulho, e apenas nesta hipótese, a liminar não poderá ser concedida antes da realização de uma audiência de mediação, com participação de vários órgãos.
Essa previsão se justifica porque, depois de decorrido tanto tempo da invasão, é bastante provável que a situação, se não for irreversível, já esteja em um grau de consolidação tamanho que qualquer modificação do estado de fato (ou seja, a retomada do imóvel) seja extremamente complexa.
Daí porque a realização de uma audiência de mediação, na tentativa de se alcançar um acordo coletivo, com a participação do Poder Público, inclusive, que é o real responsável por garantir o direito de moradia dos réus, faz sentido.
Mas não se deixe enganar: se você foi diligente e ajuizou a ação possessória de imediato, não há necessidade de realização de audiência de mediação e a liminar pode (e deve) ser concedida prontamente.
A importância da prévia produção da prova e do tempo de reação
Destacamos um tópico específico para falar da importância da correta produção da prova e, notadamente, do tempo de reação daquele que venha a ter seu imóvel invadido.
Como a definição de uma ação possessória e a análise da viabilidade da concessão de uma liminar dependem, fundamentalmente, da prova que estiver arrolada no processo, é indispensável que o autor narre e documente à exaustão todos os atos ocorridos desde antes da invasão (ou ameaça, se for o caso) até o momento do ajuizamento da ação.
Para provar a posse anterior, alguns documentos são quase inquestionáveis, como a matrícula do imóvel, a guia de IPTU/ITR do ano corrente, com prova do pagamento, a existência de faturas em nome do autor para aquele endereço, contratos assinados (se você for, por exemplo, um comodatário/arrendatário), dentre outros.
Já a invasão (ou ameaça dela) se prova, principalmente, com fotos, vídeos e boletins de ocorrência.
Se você, como no caso narrado aqui, vier a presenciar a invasão em si, grave tudo que puder e alterne entre fotos e vídeos.
Não deixe de acionar a polícia militar, ainda que ela não atue, porque, no mínimo, um boletim de ocorrência será lavrado.
Se, todavia, você não tiver presenciado a invasão, pode comparecer ao local e fazer fotos e vídeos da mesma forma, mostrando que há pessoas dentro do perímetro do imóvel.
Depoimentos escritos de vizinhos que possam ter presenciado a invasão também são provas relevantes.
Da mesma forma, ainda que alguns dias depois, não deixe de registrar o boletim de ocorrência.
Finalmente, se há algo tão importante quanto a correta produção da prova é o tempo de reação.
Já presenciamos caso em que, por inércia ou demora de alguns dias do possuidor no ajuizamento da ação possessória pertinente resultaram em uma multiplicação de invasores no imóvel, a ponto de se chegar a uma situação irreversível.
No primeiro dia pós-invasão, havia menos de 20 pessoas no local (tratava-se de um terreno urbano de grande área em Belo Horizonte). No quarto dia, quando a ação foi ajuizada, já existiam mais de 1.000.
Até ser dada a liminar e expedida a ordem, lá estavam dezenas de milhares de invasores e o cumprimento da ordem se tornou impossível.
Resultado: o terreno foi irremediavelmente perdido e à sua proprietária só restou correr atrás de uma indenização, que provavelmente nunca receberá.
Não ignore, portanto, o fato tempo.
Se seu imóvel foi invadido, procure um advogado especialista em direito imobiliário no mesmo dia e não deixe de tomar as medidas (tanto a autotutela quando o ajuizamento da ação) imediatamente.
Poderá ser a diferença entre recuperar a posse do seu imóvel ou perdê-la em definitivo.
Conclusão
Contamos hoje os detalhes de uma complexa situação de invasão de imóvel localizado em bairro de alto luxo em Belo Horizonte e como a atuação diligente e proativa foi capaz de mitigar significativamente o prejuízo do proprietário vitimado.
O final do nosso caso foi relativamente feliz, com a solução do problema em tempo recorde e sem maiores impactos no cronograma do empreendimento imobiliário em curso, e isso só foi possível porque as medidas foram tomadas imediatamente, com cobrança permanente junto aos órgãos envolvidos (especialmente o Judiciário) para que os atos fossem praticados no menor tempo possível.
Não se pode negligenciar o risco de invasões a imóveis, notadamente as coletivas, sendo dever de cada proprietário, para além de cumprir a função social de sua propriedade, vigiá-la e guardá-la contra desmandos de terceiros.
Ainda que caiba ao Poder Público, e apenas a ele, a garantia do direito constitucional à moradia. Há no Brasil uma evidente distorção tendente a imputar as mazelas da desigualdade social àqueles que movimentam a economia e pagam seus impostos.
Por isso, todo cuidado é pouco na proteção do sagrado direito à propriedade privada.
Conte conosco se você está, no momento, passando por essa indesejável situação!
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*Imagem de Getty Image, no Canva Pro.
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