Já tivemos a oportunidade de escrever sobre temas “quentes” e pautas bem atuais do mercado imobiliário, como a tokenização de imóveis, o coworking,a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) nesse segmento, o E-notariado, a matrícula notarial eletrônica e a digitalização das escrituras públicas, por exemplo.
Tais conteúdos refletem a convergência cada vez mais intensa entre o mercado imobiliário e novas tecnologias, com os impactos que elas geram para incorporadoras, construtoras, agentes financeiros, locadores, locatários, vendedores e compradores de imóveis.
Se, há algumas décadas, o universo imobiliário envolvia basicamente as faculdades de engenharia, os canteiros de obras, os corretores de imóveis e anúncios em jornal, hoje falamos em Big Data, landbanks, realidade aumentada, blockchain, criptomoedas e outras tantas ferramentas que chegaram (e continuarão chegando) com a chamada “era da Web 3.0”.
Para quem atua no meio, seja na ponta da tecnologia, seja na ponta das operações imobiliárias, deparar-se com a expressão proptech já se tornou algo habitual nos últimos tempos, mas muita gente ainda não compreende o que o termo significa ou simplesmente desconhece que, na prática, as proptechs já estão bastante inseridas no cotidiano de quem mora em centros urbanos.
Sim, falar a respeito do casamento entre tecnologia e mercado imobiliário não é nenhum modismo, pois a relevância e representatividade econômica das proptechs empresas é inegável.
Em 2020, o setor cresceu, no Brasil, 23% em relação a 2019, tendo havido um aumento de 235% no número de empresas dessa natureza nos últimos 5 anos.
E não é à toa que manchetes como “Proptechs ajudam mercado imobiliário a atravessar pandemia” ganharam destaque nos últimos tempos.
Neste artigo, vamos esclarecer o que são as proptechs e como elas se fazem presentes para conectar diversos atores do mercado imobiliário. Passaremos também, brevemente, pela atualização de algumas questões tributárias que exploramos em um texto anterior do blog, sobre os investidores-anjo, previstos no Simples Nacional.
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Índice
O que é proptech?
Grosso modo, passou-se a designar como proptech, expressão que advém da junção dos termos em inglês property (propriedade) e technology (tecnologia), as empresas que proveem soluções tecnológicas voltadas para o mercado imobiliário.
Estendendo um pouco o conceito, podemos afirmar que as proptechs são empresas que atuam em inovação nesse mercado tão significativo para a economia mundial.
Embora haja muitos pontos comuns com o segmento das fintechs[1], sobretudo no que se refere a soluções voltadas para financiamentos e garantias, o mundo das proptechs ganhou vida própria[2].
Para além do mercado de compra, venda e locação de imóveis, as proptechs, no Brasil e no mundo, são responsáveis pelo surgimento de cidades inteligentes (smart cities), edifícios inteligentes (smart buildings), utilização compartilhada de ativos imobiliários (shared economy) e produtos e serviços que promovem a melhoria dos processos construtivos (implementadas por meio das contechs ou construtechs, startups focadas em soluções para canteiros de obras)[3].
Vê-se também a utilização da expressão real estate fintech para designar as plataformas tecnológicas que facilitam a negociação de bens e propriedades imobiliárias, sendo que elas podem apenas fornecer informações a potenciais compradores e vendedores ou podem facilitar ou viabilizar, diretamente, transações comerciais envolvendo ativos imobiliários[4].
De acordo com o chamado diagrama de Venn[5], proptechs e fintechs seriam grupos distintos cuja interseção resultaria nas real estate fintechs:
Nomenclaturas e classificações à parte, o fato é que as proptechs chegaram ao mercado imobiliário para ficar.
Origens e períodos históricos
Embora não costume ser identificado um criador específico do termo proptech, acredita-se que a expressão nasceu na década de 1980, no contexto do desenvolvimento de programas de computador pioneiros em análise de dados, modelagem e gerenciamento aplicados a empreendimentos imobiliários.
Um estudo publicado pela Universidade de Oxford no ano de 2017 sugere que uma primeira fase do advento das proptechs (intitulada Proptech 1.0) compreenderia o período que vai do início da década de 1980 até os anos 2000, quando surgem empresas como a Autodesk, multinacional norte-americana que produzia softwares voltados para as atividades de engenharia, construção e arquitetura, e outras voltadas para a implementação de soluções automatizadas para análise e gestão de ativos imobiliários, tais como a Yard, a Argus e a CoStar.
A segunda fase (Proptech 2.0) seria aquela iniciada a partir dos anos 2000, impulsionada pelo desenvolvimento do ecossistema de startups após o estouro da “bolha.com”, em que empresas como a Trulia (posteriormente adquirida pela Zillow), o AirBnB, a The We Company (posteriormente rebatizada WeWork), a LendInvest e a Roofstock passam a apostar em inovações que impactaram significativamente o mercado imobiliário.
Identifica-se o período atual, iniciado após a primeira metade da década de 2010, como a “fase proptech 3.0, na qual a utilização de tecnologias emergentes como inteligência artificial, blockchain, internet das coisas e impressão 3D [podemos citar também Big Data e geolocalização] passam a abrir caminhos para as próximas startups que transformarão o futuro do segmento imobiliário[6]”.
Exemplos de atuação de proptechs e como elas já estão à nossa volta
A esta altura do texto, mesmo se você nunca havia lido ou ouvido a expressão proptechs, já deu para perceber que algumas delas são bem conhecidas.
É o caso do AirBnB. Se nunca utilizou os serviços dessa proptech fundada em agosto de 2008, em San Francisco, na Califórnia, berço dos coworkings e de outras soluções de economia compartilhada, você provavelmente conhece alguém que faz uso da plataforma, certo?
No Brasil, uma das proptechs mais famosas é o QuintoAndar, que conecta anunciantes de imóveis a potenciais locatários, sem intermediação.
Outra proptech que ganhou bastante evidência no mercado imobiliário nacional é a Loft, que recebeu, em 2021, o maior aporte da história do ecossistema brasileiro de startups, um investimento de US$ 425 milhões liderado pelo fundo norte-americano D1 Capital e que teve a participação de várias instituições de venture capital (modalidade de investimento em que investidores colocam dinheiro em negócios que ainda estão em estágio inicial, mas possuem expectativa de crescimento rápido e alta rentabilidade) e private equity (modalidade de investimento mais voltada para empresas já estabelecidas e relativamente maduras, mas geralmente não listadas na Bolsa de Valores).
Quer outro exemplo que pode ser bem familiar? É fácil: você já pesquisou algum imóvel no Viva Real ou no Zap ou já viu algum anúncio dessas plataformas?
Elas são proptechs que vieram para substituir os antigos anúncios de imóveis no jornal. Com efeito, embora ainda vejamos muitas placas de “vende-se” ou “aluga-se” coladas em janelas, postes e afins, a tecnologia veio para tornar mais fácil e mais barata a vida de quem quer vender, comprar ou alugar imóveis.
Mas as frentes de atuação das proptechs vão bem além das operações mais tradicionais do mercado imobiliário, a compra e venda e a locação (confira também nosso guia sobre contratos imobiliários).
Quer ver só?
A Kzas é uma proptech que se vende como um marketplace para soluções e serviços imobiliários estruturados a partir do uso de inteligência artificial, integrando bancos de dados das principais corretoras de imóveis do Brasil, permitindo a simulação de financiamentos junto às maiores instituições financeiras do país e atuando também no processo de aprovação e concessão de crédito. Uma iniciativa ambiciosa, uma vez que absorve e centraliza algumas das etapas do ciclo de vida imobiliário.
Já a RuaDois é uma startup que permite visitas guiadas a imóveis por meio de videochamadas. Se você é dono de uma imobiliária ou corretor de imóveis, esse é um tipo de concorrência que, até pouco tempo, você não tinha que enfrentar, não é mesmo?
Os simuladores online de vendas são relativamente comuns há alguns anos, mas a Planet Smart City, a par dessa utilidade mais trivial, permite acesso a câmeras que monitoram as áreas comuns de empreendimentos que interessem a quem está pesquisando um imóvel, especialmente casas e lotes em condomínios.
E quanto aos prestadores de serviço que se estruturam em torno do mercado imobiliário e, no passado, dependiam da propaganda “boca a boca” para conseguirem clientes? As proptechs também afetaram a vida deles?
Com toda a certeza. A Fix, por exemplo, coloca à disposição de quem possui um imóvel uma gama de profissionais que prestam serviços de montagem de móveis, marcenaria, instalações elétricas, correção de problemas hidráulicos, pintura e outros, prometendo ser “a Uber de serviços”, com mecanismos de avaliação e rankeamento.
E em termos de soluções financeiras? O que as proptechs trouxeram de novo para quem opera no mercado imobiliário?
A Atta é uma plataforma que oferece serviços voltados para a desburocratização do acesso ao crédito imobiliário e a garantias locatícias, já tendo atendido mais de 200 mil clientes em território nacional.
Por sua vez, a Credihome (que se identifica apenas como fintech) conecta agentes financeiros a interessados em financiamento imobiliário e produtos de home equity (obtenção de recursos a partir de um imóvel oferecido em garantia), prestando assessoria desde a aprovação do crédito até a liberação do dinheiro.
Já ouviu falar em crowdfunding (financiamento coletivo) imobiliário?
Essa modalidade, que ganhou força nos Estados Unidos após a crise do subprime e chegou ao Brasil em 2015, é a aposta da Urbe.me (que afirma ser a primeira fintech de investimento imobiliário do país) e da Glebba (que veicula oportunidades de investimento que seriam de baixo risco e alto retorno).
Algumas incorporadoras têm colocado suas fichas em financiamentos coletivos como forma de mitigar riscos e buscar fontes alternativas de recursos. É o seu caso?
E para o construtor? O que existe nessa ampla gama de produtos e serviços?
Um item de destaque é o Gero Obras, autoproclamado “o primeiro engenheiro digital do mundo”, que oferece um simulador para o planejamento de torres residenciais e comerciais com mais de 7 pavimentos.
Para quem quer apenas alugar “um cantinho”, a Yuca é uma startup de co-living que gerencia a locação de quartos individuais em apartamentos compartilhados e localizados em bairros centrais da cidade de São Paulo, agregando serviços que comporiam uma espécie de living-as-a-service, como a disponibilização de imóveis mobiliados e decorados e a inclusão, no boleto do aluguel, das contas de água, luz, internet e despesas com limpeza semanal.
Como se vê, há ofertas para todos os gostos.
A legislação tributária em favor da inovação: o investidor-anjo
Como as proptechs, via de regra, oferecem soluções tecnológicas que demandam capital humano qualificado e investimentos que podem ser elevados, muitos profissionais que possuem projetos interessantes para o mercado imobiliário acabam sem saber como e onde buscar recursos que tornem suas ideias viáveis financeiramente.
Pensando nisso, o legislador brasileiro andou bem ao, com a Lei Complementar 155/2016 e com a Lei Complementar 182/2021, alterar o texto da Lei Complementar 123/2006 para prever a possibilidade de empresas enquadradas no Simples Nacional receberem aportes do chamado investidor-anjo.
Em outras palavras, para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a pessoa jurídica enquadrada como Microempresa ou Empresa de Pequeno Porte, caso de muitas startups no início de suas respectivas trajetórias, passou a poder receber aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa, por meio de um contrato de participação, com vigência não superior a 7 anos, sendo a pessoa física ou jurídica responsável pelo aporte do capital designada como investidor-anjo.
Nos termos da lei, o investidor-anjo:
- não será considerado sócio e nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa, resguardada a possibilidade de participação nas deliberações em caráter estritamente consultivo, conforme pactuação contratual;
- não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele as previsões relativas à desconsideração da personalidade jurídica previstas no artigo 50 do Código Civil; e
- será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de 7 anos, podendo exigir prestação de contas dos administradores e examinar os livros, os documentos e o estado do caixa e da carteira da sociedade, com a possibilidade de demandar, anualmente, o inventário, o balanço patrimonial e o balanço de resultado econômico da empresa.
O investidor-anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, 2 anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos conforme previsão do artigo 1.031 do Código Civil, não sendo permitido que ultrapassem o valor investido devidamente corrigido por índice previsto em contrato.
Os valores de capital aportados pelo investidor-anjo não são considerados receitas da sociedade para fins de enquadramento como Microempresa ou Empresa de Pequeno Porte e a emissão e a titularidade de aportes especiais não impedem a opção pelo Simples Nacional.
Caso os sócios decidam pela venda da empresa, o investidor-anjo terá direito de preferência na aquisição, bem como direito de venda conjunta da titularidade do aporte de capital, nos mesmos termos e condições que forem ofertados aos sócios regulares (na linguagem societária, a conhecida cláusula tag along).
Um detalhe importante: fundos de investimento poderão aportar capital como investidores-anjo em Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, conforme regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Eis, aí, uma grande oportunidade, ainda pouco explorada, para que pequenos negócios, hoje enquadrados no Simples Nacional e que, potencialmente, podem se tornar proptechs de sucesso, almejem voos maiores e possam contar com um capital que, em circunstâncias normais, poderia inviabilizar a continuidade da empresa no regime tributário simplificado.
Conclusão
Ao ler este conteúdo, você percebeu que as proptechs têm transformado o mercado imobiliário em todas as camadas, representando concorrência para alguns, oportunidades para outros e, de maneira geral, propiciando uma evolução que apenas a tecnologia é capaz de proporcionar.
Saíram na frente as incorporadoras, construtoras e prestadoras de serviço que têm sabido usar as inovações tecnológicas a seu favor para, com segurança jurídica, estruturarem novos modelos de negócio para seus clientes.
Os compradores ou locatários de imóveis que mergulham nas funcionalidades disponibilizadas por diversas plataformas com um baixo custo (ou com um custo por vezes inexistente para o consumidor final) também têm vantagens competitivas na hora de encontrar o imóvel que almejam.
E os desenvolvedores de produtos e serviços que podem vir a agregar o portfólio de uma proptech têm, na legislação tributária brasileira, um ponto de partida interessante para fomentar suas iniciativas.
Um jogo de ganha-ganha que melhora o ambiente de negócios para o mercado imobiliário brasileiro.
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[1] Definida pelo Banco Central do Brasil como “qualquer sociedade empresária que faz uso de tecnologia e introduz inovações no mercado financeiro com potencial de criar novos modelos de negócios, especialmente por meio de plataformas online e de serviços digitais, atuando em mercados de crédito, pagamento, gestão financeira, empréstimo, investimento, financiamento, seguro, negociação de dívidas, câmbio e multisserviços”. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs
[2] DINIZ, Bruno. O Fenômeno Fintech: tudo sobre o movimento que está transformando o mercado financeiro no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Alta Books, 2019, p. 63.
[3] Idem.
[4] BAUM, Andrew. PropTech 3.0: The Future of Real Estate. University of Oxford Research. Oxford: Orford Press, 2017, p. 8.
[5] BAUM, Andrew. Op. cit., p. 7.
[6] DINIZ, Bruno. Op. cit., pp. 63-64.
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