A alienação fiduciária é um direito de garantia real em que se transfere a propriedade de um bem como garantia de uma operação.

Atualmente, a alienação fiduciária é a forma de garantia mais utilizada nos negócios do setor imobiliário, porém, nos últimos tempos, a sua aplicação passou a ser questionada com base nas normas e princípios do Direito de Consumidor.

Esse assunto foi tratado em artigo anterior, publicado aqui no blog, onde falamos sobre o conflito normativo entre a Lei de Alienação Fiduciária, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Distrato.

A polêmica em torno do tema chegou ao Superior Tribunal de Justiça e foi afetada para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, tendo sido delimitada a seguinte controvérsia: “Definição da tese alusiva à prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia.”

O julgamento aconteceu no dia 26 de outubro, e é sobre essa decisão que falaremos no artigo de hoje.

Como funciona a alienação fiduciária em garantia

Como já explicamos em artigo anterior, a alienação fiduciária é a transferência da propriedade (resolúvel) de um bem como garantia de pagamento para a aquisição do próprio bem.

Podemos exemplificar a alienação fiduciária da seguinte forma:

A instituição financeira concede um empréstimo para um sujeito adquirir o imóvel. O comprador, então, celebra o contrato de compra e venda junto ao Incorporador/Construtor, transferindo a propriedade do bem para ele.

Em seguida, como garantia do empréstimo contraído para a compra do bem, o comprador transfere a propriedade do imóvel adquirido à instituição concedente.

Ou seja, o próprio imóvel objeto da compra e venda servirá de garantia ao pagamento do empréstimo. Assim, a propriedade do imóvel ficará registrada em nome da instituição financeira, que será titular da chamada propriedade resolúvel.

Chama-se de “resolúvel” essa espécie de propriedade porque ela poderá ser resolvida (deixará de existir) com o adimplemento da obrigação. Explica-se: enquanto a dívida estiver em aberto, a propriedade do imóvel estará registrada em benefício da instituição financeira. Após a quitação da dívida, a propriedade do imóvel retornará ao comprador.  

Contudo, se a dívida não for paga, a propriedade do imóvel se consolidará em nome da instituição financeira. O comprador, por sua vez, perderá o bem, e, a depender do valor da dívida, perderá também os valores que tiver pagado até então. 

A garantia também pode ser constituída diretamente com o incorporador/construtor do imóvel, sem a intermediação de uma financeira. Nesses casos, a própria vendedora “financia” a compra do bem.

Veja-se, abaixo, uma ilustração para melhor demonstrar o procedimento:

Alienação fiduciária constituída pelo Incorporador - Lage e Portilho Jardim Advocacia e Consultoria

Conflito normativo entre a Lei de Alienação Fiduciária e o Código de Defesa do Consumidor

Embora a alienação fiduciária seja regida por uma lei específica, a Lei 9.514/1997, a sua aplicação vinha sendo questionada com base no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, que determina:

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

Nos termos da norma consumerista, portanto, seria vedada a perda integral dos valores pagos em caso de resolução do contrato por inadimplemento, pois, neste caso, o devedor perderia tanto o bem quanto o dinheiro gasto até então.

Surgiu, então, um conflito entre as disposições da Lei de Alienação Fiduciária e o Código de Defesa do Consumidor.

Ocorre que a Lei de Alienação Fiduciária, além de tratar especificamente sobre o tema, foi publicada em 1997, posteriormente ao CDC, norma que, além de mais antiga, é mais genérica.

Questiona-se: em um contrato com pacto adjeto de alienação fiduciária, se a execução daquela garantia não pudesse ser efetuada na forma prevista na lei, haveria algum sentido em firmar tal garantia?

Além disso, o adquirente, ao pactuar a alienação fiduciária, tem ciência inequívoca de que o imóvel é dado como garantia ao pagamento da própria dívida. Ou seja, se ele estiver inadimplente e deixar de pagar as parcelas do financiamento, ele sabe que poderá perder o bem.

Portanto, se o comprador tem ciência prévia de que o atraso no pagamento poderá levar à perda do bem, não há, a priori, qualquer ilegalidade na consolidação da propriedade em benefício do credor.

Por isso, o afastamento das regras específicas da alienação fiduciária e aplicação do CDC poderia gerar uma grave crise no setor imobiliário, já que a garantia perderia sua razão de ser.

Não estamos negando que a relação entre o vendedor e o adquirente do imóvel seja de consumo, tampouco a aplicação do Direito de Consumidor. Contudo, se a garantia utilizada é regida por lei específica, ela também deverá ser respeitada.

A tese firmada pelo STJ: Tema 1095

Depois de tanta polêmica, o STJ finalmente firmou posicionamento sobre o assunto por meio do julgamento do Tema 1095, ocorrido no dia 26/10/2022, quando foi definida a seguinte tese:

“Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.” 

O julgamento, de relatoria do ministro Marco Buzzi, prestigia o instituto da alienação fiduciária, além de corroborar aquilo que defendemos em nosso artigo: o CDC é legislação genérica e não pode afastar a aplicação da norma específica sobre o tema.

Até a data de redação deste artigo, o inteiro teor do acórdão ainda não havia sido publicado pelo STJ. Porém, do precedente firmado, já é possível extrair duas condições para a aplicação da lei especial:

(1) o contrato objeto da garantia deve estar registrado no Cartório de Registro de Imóveis, e

(2) o devedor deve ser constituído em mora na forma prevista na Lei de Alienação Fiduciária.

Na prática, então, em caso de inadimplemento da dívida, o credor poderá dar início ao procedimento previsto na legislação para que a propriedade do bem seja consolidada em seu favor.

Em seguida, ele deverá promover o leilão desse bem. Se o valor do lance for superior ao valor da dívida, o devedor receberá o valor remanescente, ou seja, o que “sobrar” depois do pagamento do débito.

Porém, se o valor da dívida for inferior ao valor obtido com o leilão do imóvel, o devedor, além de perder o imóvel, não receberá nenhuma restituição. Era este o ponto que deu origem à polêmica em torno da legislação aplicável, que agora, felizmente, foi afastada.

Você pode ler nosso artigo específico, caso queira entender o procedimento de execução da alienação fiduciária como garantia em detalhes.

Conclusão

A decisão do STJ trouxe alívio para o mercado imobiliário e merece ser celebrada, pois afastará, a partir de agora, qualquer questionamento acerca da legislação aplicável em caso de resolução, por inadimplemento do comprador, de contratos garantidos por alienação fiduciária.

Ao priorizar a aplicação da lei especial, o julgamento dá segurança jurídica às construtoras e incorporadoras que adotam a alienação fiduciária como garantia, e, por consequência, beneficia também os compradores. Afinal, se o vendedor tem mais segurança para vender, poderá cobrar taxas de juros mais baixas, por exemplo.

Embora a consequência do inadimplemento – perda do imóvel e dos valores pagos – possa parecer, num primeiro momento, excessivamente gravosa, é preciso lembrar que o procedimento previsto na lei é longo e cheio de detalhes que visam a, justamente, dar segurança a todas as partes envolvidas.

O que não se pode permitir é que o devedor inadimplente saia em vantagem sobre o credor, sem qualquer penalidade, pois isso significaria verdadeiro “passe-livre” para o inadimplemento contratual.

Ademais, em condições normais, se as partes têm clareza acerca de todos os termos do contrato, não há razão para descumpri-lo. Para situações atípicas e de anormalidade, como podemos mencionar, a título de exemplo, a pandemia do COVID-19, existem mecanismos legais para revisar ou readequar o pagamento de financiamentos.

Afinal, de nada adianta constituir uma garantia real sobre um negócio jurídico, se ela não puder ser efetivamente executada. Qualquer decisão em sentido contrário pelo STJ esvaziaria o conteúdo do instituto da alienação fiduciária.

Temos diversos artigos sobre incorporação imobiliária no blog, não deixe de ler nossas outras publicações!

Se você gostou deste artigo ou ainda tem alguma dúvida sobre o tema, deixe seu comentário logo abaixo e inscreva-se para receber em primeira mão as nossas próximas publicações.

Você também poderá nos avaliar no Google.

*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.

Posts relacionados
Share This