É comum no setor imobiliário (para não dizermos essencial) a tomada e concessão de crédito para que os empreendimentos sejam iniciados e, de igual modo, para possibilitar que os imóveis sejam adquiridos pelos interessados.

Por serem os imóveis bens de valores consideravelmente mais altos que os demais, o que pode tornar inviável um pagamento à vista, o financiamento é o que possibilita a compra e venda para a maioria dos brasileiros.

Porém, para assegurar a viabilidade dos negócios imobiliários, pode ser exigida alguma espécie de garantia para a concessão do financiamento, a fim de tornar o negócio mais sólido, vantajoso e seguro.

Afinal, se o Incorporador/Construtor investe em determinado empreendimento, ele precisa ter o mínimo de segurança de que o capital e esforços ali empregados terão algum retorno, ainda que não seja o planejado inicialmente.

De igual modo, as instituições financeiras emprestam dinheiro aos consumidores para que adquiram seus bens, mediante a inclusão de garantias no contrato.

Atualmente, a garantia mais frequentemente adotada nas operações imobiliárias é a alienação fiduciária. A opção dos Incorporadores/Construtores e das Instituições Financeiras por essa espécie de garantia vem da celeridade, eficácia e economicidade de sua execução, o que a torna a opção mais vantajosa para a garantia do financiamento imobiliário.

Em síntese, a alienação fiduciária é um direito de garantia real em que há a transmissão da propriedade resolúvel ao credor fiduciário pelo devedor fiduciante. Em outras palavras, o credor empresta o dinheiro para o devedor adquirir o imóvel, e o devedor, por sua vez, transfere a propriedade do imóvel para o credor, com quem ficará enquanto a dívida não for quitada em sua integralidade.

Contudo, existem algumas correntes doutrinárias e jurisprudenciais tendentes a deturpar e praticamente abolir o instituto da alienação fiduciária no ordenamento. Todavia, isso poderá trazer prejuízos irreversíveis aos empreendedores desse segmento, levando o mercado imobiliário à ruína.

Nosso artigo de hoje busca, justamente, abordar situações em que a alienação fiduciária é colocada em xeque, em especial, pelo que dispõe a chamada “Lei de Distrato” e o Código de Defesa do Consumidor.

Além disso, buscaremos, ao longo do texto, apresentar sugestões práticas para que o Incorporador/Construtor, quando se confundir com a figura do credor fiduciário, esteja protegido para executar suas atividades.

Alienação Fiduciária: Lei 9.514/97

A alienação fiduciária é um direito de garantia real em que, diferentemente dos outros, transfere a propriedade como forma de garantia da operação.

Alienação fiduciária constituída em financiamento bancário

Alienação fiduciária constituída em financiamento bancário - Lage e Portilho Jardim Advocacia e Consultoria

Alienação fiduciária constituída pelo Incorporador

Alienação fiduciária constituída pelo Incorporador - Lage e Portilho Jardim Advocacia e Consultoria

Possibilidade de constituição

A Lei 9.514/1997 traz a regulamentação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e a instituição da alienação fiduciária.

Já dedicamos, em oportunidade anterior, um artigo exclusivo sobre alienação fiduciária. Caso queira compreender melhor o instituto, você pode acessar o texto clicando aqui.

Continuando nossa discussão, enquanto somente as Instituições autorizadas a operar no SFI podem ofertar financiamento imobiliário, qualquer pessoa física ou jurídica pode contratar a alienação fiduciária.

Assim, a constituição dessa garantia não é privativa de Instituições Financeiras, podendo o Incorporador/Construtor firmar um contrato com o adquirente contendo cláusula ou pacto adjeto de alienação fiduciária.

Ainda, por força do artigo 23 da lei, não é necessária escritura pública para a constituição da garantia, podendo o contrato particular ser utilizado como título para registro junto ao Cartório de Imóveis competente. O registro da matrícula do imóvel, aí sim, é essencial para a validade e exigibilidade da garantia, pois é o que torna pública a informação da existência de ônus sobre o bem.

Outro efeito importante desse instituto é que, com a constituição da propriedade fiduciária, haverá o desdobramento da posse: o devedor fiduciante ficará com a posse direta, podendo utilizar o imóvel como se fosse o dono, enquanto o credor fiduciário ficará com a posse indireta, vez que proprietário fiduciário do bem.

Portanto, só é possível constituir a alienação fiduciária se o imóvel estiver prestes a ser entregue, para que o desdobramento da posse ocorra efetivamente.

Incorporação Imobiliária: unidade futura

No nosso guia de incorporação imobiliária, você pode compreender como essas operações são fundamentais para o crescimento e desenvolvimento do mercado imobiliário.

A incorporação imobiliária é a construção de um ou mais empreendimentos imobiliários, que possuam unidades autônomas (em geral, apartamentos) em regime condominial, com a finalidade da venda antecipada de tais unidades, total ou parcialmente. São os chamados “imóveis na planta”.

Se contraído financiamento para a aquisição de um imóvel na planta, é perfeitamente possível que a dívida seja garantia por alienação fiduciária, sendo que o próprio imóvel em construção será a garantia.

As unidades já edificadas desses empreendimentos também poderão ser objeto de alienação fiduciária.

Em caso de inadimplemento, a garantia poderá ser executada pelo rito previsto nos artigos 26 e 27 da Lei 9.514/1997.

Parcelamento de solo urbano: loteamento e desmembramento

Assim como na aquisição de imóveis em incorporação imobiliária, os lotes oriundos de parcelamento de solo urbano (loteamento ou desmembramento) também poderão ser objeto de pactos com garantia de alienação fiduciária.

A diferença, aqui, é que as Instituições Financeiras geralmente não financiam esse tipo de operação.

Desse modo, cabe ao próprio Loteador realizar a compra e venda com o pacto adjeto de alienação fiduciária, de modo que o lote responda pelo valor da dívida contraída para sua própria aquisição.

Ocorre que, mesmo com a garantia de pagamento do próprio imóvel (lote), os Loteadores podem enfrentar alguns problemas para a execução da alienação fiduciária. Vejamos alguns deles e suas possíveis soluções:

Indenização de benfeitorias

É comum que esse tipo de imóvel seja vendido para edificação posterior: casas, sítios, fazendas, hotéis.

Contudo, para a imissão na posse do adquirente, a legislação municipal poderá exigir, além das autorizações prévias para instalação do empreendimento, condições mínimas de habitabilidade do local, em especial, nos loteamentos.

A título de exemplo, o Plano Diretor do Município de Belo Horizonte prevê os seguintes requisitos para o parcelamento do solo:

Art. 121 – Os parcelamentos devem atender aos dispositivos do Anexo XII desta lei, bem como às seguintes condições:

I – todos os lotes devem confrontar-se com via pública, vedada a frente exclusiva para via de pedestres;

II – a extensão máxima da somatória das testadas dos imóveis contíguos compreendidos entre duas vias transversais não pode ser superior a 200m (duzentos metros);

III – o sistema de circulação deve ser elaborado considerando as condições topográficas e geológicas locais e observando as diretrizes do sistema de circulação e a condição mais favorável à insolação dos lotes;

IV – as vias previstas no sistema de circulação do loteamento devem ser articuladas com as vias adjacentes oficiais, existentes ou projetadas, e compatibilizadas com a topografia local.  

Atendidos os requisitos pré-estabelecidos pelo Município, o adquirente poderá ser imitido na posse do imóvel.

Sendo possível a imissão, poderá ser constituída a alienação fiduciária, com o consequente desdobramento da posse, na forma da lei.

Mas e nos casos em que há imissão irregular por parte do adquirente, e ele constrói no imóvel sem a devida autorização?

E, ainda, se o adquirente começa uma construção e deixa de pagar a dívida junto ao Loteador. O que pode ser feito?

De um lado, há o artigo 34 da Lei de Parcelamento do Solo (Lei 6.766/1979), que prevê o direito do adquirente de receber indenização pelas benfeitorias realizadas no imóvel:

Art. 34. Em qualquer caso de rescisão por inadimplemento do adquirente, as benfeitorias necessárias ou úteis por ele levadas a efeito no imóvel deverão ser indenizadas, sendo de nenhum efeito qualquer disposição contratual em contrário.

Contudo, o direito à indenização está condicionado à regularidade da construção:

Art. 34 (…)

§ 1º Não serão indenizadas as benfeitorias feitas em desconformidade com o contrato ou com a lei.

Ou seja, se o adquirente constrói antes de expedidas as autorizações legais para liberação do lote, ou, ainda, em dissonância com o que dispõe o contrato acerca do momento em que se pode edificar, o loteador estará desobrigado de indenizar qualquer benfeitoria nesse sentido.

Para além da previsão legal, destaca-se o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em situação similar. Para o STJ, o direito de indenização e de retenção das benfeitorias está sujeito à regularidade da construção, conforme o julgamento do Recurso Especial 1.643.771:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL C/C REINTEGRAÇÃO DE POSSE E INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE LOTE. ACESSÃO ARTIFICIAL POR CONSTRUÇÃO. DIREITO DO PROMISSÁRIO COMPRADOR À INDENIZAÇÃO E À RETENÇÃO. ANÁLISE DA REGULARIDADE DA EDIFICAÇÃO. JULGAMENTO: CPC/73.

1. Ação de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel c/c reintegração de posse e indenização por perdas e danos, ajuizada em 02/05/2012, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 10/11/2015 e concluso ao gabinete em 14/12/2016.

2. O propósito recursal é dizer sobre a obrigação do promitente vendedor de indenizar a construção realizada pelos promissários compradores no lote objeto de contrato de promessa de compra e venda cuja resolução foi decretada; bem como sobre a compensação dos honorários advocatícios arbitrados na origem, diante da sucumbência recíproca das partes.

3. O art. 34 da Lei 6.766/79 prevê o direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis levadas a efeito no lote, na hipótese de rescisão contratual por inadimplemento do adquirente, regra essa aplicada também às acessões (art. 1.255 do CC/02), mas o legislador, no parágrafo único do mesmo dispositivo legal, fez a ressalva de que não serão indenizadas as benfeitorias – ou acessões – feitas em desconformidade com o contrato ou com a lei.

4. A edificação realizada sem a prévia licença para construir é tida como clandestina, configurando atividade ilícita e, portanto, sujeitando o responsável às sanções administrativas de multa, embargo ou demolição.

5. Se, perante o Poder Público, o promissário comprador responde pelas sanções administrativas impostas em decorrência da construção clandestina, não é razoável que, entre os particulares, recaia sobre o promitente vendedor o risco quanto à (ir)regularidade da edificação efetivada por aquele.

6. O promissário comprador faz jus à indenização pela acessão por ele levada a efeito no lote, desde que comprovada a regularidade da obra que realizou ou demonstrado que a irregularidade eventualmente encontrada é sanável.

7. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp n. 1.643.771/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/6/2019, DJe de 21/6/2019.)

Desse modo, em caso de construção irregular, o Loteador não terá obrigação de indenizar o adquirente em caso de rescisão por inadimplemento.

Mas e se a construção for regular?

Se não houver alienação fiduciária, o Loteador estará obrigado a indenizar as benfeitorias, observados os parâmetros legais para resolução do contrato por inadimplemento.

Já se houver sido pactuada a alienação fiduciária, a situação muda.

Até aqui, já sabemos que a alienação fiduciária (i) pode ser contratada por qualquer pessoa física ou jurídica; (ii) não precisa ser celebrada por escritura pública; e (iii) induz ao desdobramento da posse, de forma que sua constituição precisa se dar quando o imóvel estiver apto a ser entregue/habitado.

Nesse contexto, é possível que haja a celebração da promessa de compra e venda em um primeiro momento e, instalado o loteamento/desmembramento, com a expedição do TVO (Termo de Vistoria de Obra) pela autoridade competente, seja celebrado posteriormente o pacto de alienação fiduciária do lote.

Assim, o negócio será constituído de duas etapas e dois instrumentos contratuais: (i) a promessa de compra e venda anterior à entrega do empreendimento; (ii) o pacto adjeto de alienação fiduciária após a imissão na posse.

Após a constituição da alienação fiduciária, em caso de inadimplência, o devedor será intimado para efetuar o pagamento da dívida em 15 (quinze) dias. Se não pagar, a propriedade será consolidada em benefício do credor.

Na hipótese de imissão na posse, constituição de alienação fiduciária e posterior inadimplemento do adquirente, o imóvel será inevitavelmente levado a leilão, judicial ou extrajudicial.

Isso porque o §2º do artigo 34 da Lei 6.766/1979 obriga o Loteador a levar o imóvel a leilão no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da constituição em mora do devedor:

§ 2º No prazo de 60 (sessenta) dias, contado da constituição em mora, fica o loteador, na hipótese do caput deste artigo, obrigado a alienar o imóvel mediante leilão judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.  

Ou seja, ainda que o imóvel possua edificação feita pelo adquirente de forma regular, ele será levado a hasta pública, acrescido das acessões e benfeitorias.

Segundo a Lei 9.514/1997, serão feitos dois leilões (judiciais ou extrajudiciais), para a tentativa de alienação do imóvel.

No primeiro leilão, o valor mínimo para o lance será o valor do imóvel, ou seja, aquele que tiver sido estipulado no contrato, ou, se este for inferior à dívida, o valor utilizado pelo Município para fins de ITBI.

Desse modo, o valor mínimo do leilão não necessariamente superará o valor da construção posteriormente edificada pelo adquirente.

Caso os lances sejam inferiores ao valor do imóvel, será feito um segundo leilão em que o valor mínimo para lance será o valor da dívida, acrescidos dos encargos legais e contratuais, além das demais despesas do imóvel e do leilão.

Somente depois de quitada a dívida, se houver saldo remanescente, é que o adquirente receberá tal importância, já acrescida dos valores correspondentes às benfeitorias realizadas no imóvel.

Se no segundo leilão não for ofertado o lance mínimo, a dívida será extinta e a propriedade do imóvel será constituída integralmente em nome do credor fiduciário.

Essa é a essência da alienação fiduciária: o imóvel dado em garantia responde pelo adimplemento da dívida contraída. Caso o leilão não dê o resultado pretendido, o imóvel se tornará única e exclusivamente do credor, e a dívida, por conseguinte, será extinta, ainda que ela seja superior ao valor do imóvel ou que o valor do imóvel seja maior que o da dívida.

Ambas as partes correm o risco, mas o pagamento da dívida, ainda que parcial, fica garantido pelo imóvel.

Porém, como dissemos no início desse artigo, existem divergências quanto à execução da alienação fiduciária e outras disposições legais. Trataremos dessas divergências diante do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e da Lei do Distrato (Lei 13.786/2018).

Alienação Fiduciária x CDC

A princípio, se a garantia de um contrato é por alienação fiduciária, aplicam-se as regras previstas na Lei 9.514/1997. Sem maiores complicações quanto a isso.

Contudo, alguns consumidores, invocando a legislação consumerista, questionam judicialmente a execução de tal instituto, diante de seu próprio inadimplemento, requerendo a rescisão contratual e a restituição dos valores pagos.

Essa pretensão é baseada no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor (CDC):

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

Pela leitura fria do artigo, o que seria vedado pelo ordenamento é a redação de cláusula que prevê a perda total das prestações em caso de resolução do contrato, além da devolução do imóvel.

Porém, em uma interpretação teleológica, baseando-se no fim a que se destina a legislação consumerista, é possível compreender que a intenção do legislador era evitar que o devedor, uma vez compelido a devolver o imóvel, não receba restituição alguma.

Ocorre que a Lei que rege a alienação fiduciária é posterior e especial, vez que trata especificamente do instituto. Por conseguinte, o CDC é anterior e geral, aplicável a toda e qualquer relação de consumo. Na prática, isso significa que a lei de alienação fiduciária deve se sobrepor ao Código de Defesa do Consumidor.

Ora, a grande maioria das operações imobiliárias envolve relações de consumo, já que grande parte dos imóveis são destinados a moradia da população.

Se a rescisão dos contratos que possuem o gravame da alienação fiduciária não observar o disposto na lei própria, e sim o CDC, a garantia e sua contratação se torna inócua.

Veja: se o empreendedor, obrigado a levar o imóvel a leilão quando há constituição da alienação fiduciária, ainda for compelido a devolver os valores pagos ao adquirente, mesmo que o leilão seja suficiente para apenas quitar a dívida, não haverá sentido em contratar tal garantia – o empreendedor não mais terá o imóvel, não terá seu crédito adimplido e ainda precisará devolver dinheiro ao devedor? Não nos parece a teoria mais acertada.

Admitir tal situação é banalizar a alienação fiduciária e os princípios constitucionais da boa-fé, além de levar o sistema imobiliário ao colapso.

A jurisprudência sobre o tema não é pacífica. Existem decisões em ambos os sentidos:

1°) Prevalência do CDC sobre a Lei 9.514/1997

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL – PROMESSA DE COMPRA E VENDA – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – LOTE – INADIMPLÊNCIA DOS COMPRADORES – APLICAÇÃO DO CDC – RESTITUIÇÃO DAS PARCELAS PAGAS – RETENÇÃO – LIMITE – JUROS DE MORA – TRÂNSITO EM JULGADO.

– Os procedimentos previstos na Lei 9.514/97 são aplicáveis na hipótese de rescisão do contrato por iniciativa do credor, ante o inadimplemento do devedor, o que não impede este obter rescisão do contrato mediante aplicação do Código de Defesa do Consumidor, sobretudo por estar caracterizada relação de consumo e por desrespeito aos procedimentos previstos para aplicação da Lei de regência do Sistema de Financiamento Imobiliário e alienação fiduciária.

– A Súmula n.º 543 do Superior Tribunal de Justiça dispõe que a restituição das parcelas pagas deve ocorrer de forma parcial, caso tenha sido o comprador quem deu causa à rescisão da promessa de compra e venda.

– A jurisprudência do STJ entende ser razoável retenção pelo vendedor de parte das prestações pagas pelo comprador, no valor compreendido entre 10% e 25%, na hipótese de rescisão contratual.

– É válida cláusula contratual que transfere ao comprador pagamento da comissão de corretagem, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem.

– Não previamente individualizada no contrato e sem comprovante de realização do serviço, a retenção de valor por serviço de corretagem é inadequada.

– É abusiva a retenção de valor, por taxa de administração, comercialização, IPTU, não comprovadas despesas nos percentuais descritos no contrato, e impedindo verificação de prejuízo superior à reparação já concedida pela cláusula penal no importe de 10%.

– A Lei n° 13.786/2018 não se aplica aos contratos firmados antes da sua vigência, nos termos da orientação jurisprudencial do STJ.

– Conforme entendimento jurisprudencial do STJ, “nos compromissos de compr a e venda de unidades imobiliárias anteriores à Lei n. 13.786/2018, em que é pleiteada a resolução do contrato por iniciativa do promitente comprador de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros de mora incidem a partir do trânsito em julgado da decisão” (REsp 1.740.911/DF).  (TJMG – Apelação Cível 1.0000.21.222175-8/001, Relator(a): Des.(a) Cavalcante Motta , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 30/11/2021, publicação da súmula em 01/12/2021)

Apelação cível. Compra e venda de imóvel com cláusula de alienação fiduciária. Consolidação da propriedade em favor da ré. Pedido de devolução dos valores pagos. Alegação de dificuldades financeiras em permanecer no negócio jurídico. Sentença de improcedência. Alienação fiduciária. Existência de pacto acessório de alienação fiduciária em garantia não impede o desfazimento do negócio jurídico. Confusão entre credora fiduciária e alienante. Situação que evidencia o intuito de burlar o direito dos adquirentes de desfazer o negócio jurídico. Impossibilidade. Considerada natureza jurídica de compromisso de compra e venda do imóvel. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e das Súmulas 1, 2 e 3 desta Corte de Justiça. Devolução das parcelas pagas. Aplicação dos princípios da equidade e da boa-fé que regem as relações de consumo, bem como o do equilíbrio contratual. Interpretação dos artigos 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor. Retenção de 10% dos valores pagos adequados para cobrir as despesas de administração, publicidade e outras inerentes à contratação. Alteração da r. sentença para determinar que a ré devolva aos autores 90% dos valores pagos Sucumbência invertida. Resultado. Recurso provido parcialmente.  (TJSP; Apelação Cível 1007775-16.2018.8.26.0100; Relator (a): Edson Luiz de Queiróz; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 25ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/12/2019; Data de Registro: 19/12/2019)

Tanto na decisão do TJSP quanto na do TJMG, admitiu-se o pedido de rescisão do contrato com restituição dos valores pagos sob a ótica do CDC, mesmo havendo a constituição de alienação fiduciária.

2°) Prevalência da Lei 9.541/1997 sobre o CDC

APELAÇÃO CÍVEL. COMPRA E VENDA. IMÓVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. DEVOLUÇÃO DE VALORES. ARTIGO 53 DO CDC. NÃO APLICAÇÃO. ARTIGOS 26 E 27 DA LEI 9.514/97. PROCEDIMENTO ESPECIAL E POSTERIOR AO CDC. OBSERVÂNCIA. SEGUNDO LEILÃO. RESULTADO NEGATIVO. EXTINÇÃO DA DÍVIDA. EXPEDIÇÃO DE TERMO DE QUITAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS. SENTENÇA MANTIDA.

1.  Malgrado o Código de Defesa do Consumidor disciplinar, genericamente, em seu artigo 53 sobre a proibição de cláusulas que estabeleçam a perda total dos valores pagos pelo consumidor em favor do credor, em contratos de compra e venda de imóveis mediante pagamento em prestações, hão de prevalecer as regras específicas previstas na Lei n.º 9.514/97, promulgada posteriormente, acerca do procedimento a ser observado para a resolução de contratos que possuem cláusula de alienação fiduciária.

2. Ocorrida a consolidação da propriedade em favor do alienante, deve ele alienar o bem, por meio de leilões, a fim de recuperar seu crédito, devolvendo ao adquirente o saldo que eventualmente superar a dívida.

3. Não logrando êxito o segundo leilão, prevê expressamente o artigo 27, §§ 5º e 6º, da Lei 9.514/97, sobre a extinção da dívida e exoneração do credor quanto às obrigações constantes no § 4º, dentre elas, a restituição de quaisquer valores, visto não alcançado o valor total devido, com consequente expedição de termo de quitação em favor do devedor, além da livre disposição do bem imóvel a favor do credor.

4. Ocorrida a resolução do contrato mediante procedimento especial, disciplinado expressamente em lei, descabe a devolução de valores pagos no curso do financiamento. 5. Recurso conhecido e desprovido. (TJGO, Apelação (CPC) 0048127-62.2015.8.09.0051, Rel. BEATRIZ FIGUEIREDO FRANCO, 4ª Câmara Cível, julgado em 03/06/2019, DJe de 03/06/2019)

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PLEITO DE CONDENAÇÃO DA RÉ À RESTITUIÇÃO DAS PARCELAS PAGAS –VALOR DA CAUSA – VALOR DO CONTRATO QUE SE PRETENDE RESCINDIR – MANUTENÇÃO – PARTES ATIVA E PASSIVA LEGÍTIMAS – CONTRATO OBJETO DA DEMANDA ENTABULADO ENTRE OS LITIGANTES – INTERESSE DE AGIR PRESENTE – DEMANDA NECESSÁRIA E ADEQUADA – APLICAÇÃO DA LEI Nº 9.514/97 – RESCISÃO DE PACTO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA QUE POSSUI PROCEDIMENTO PRÓPRIO – IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO ARTIGO 53, DO CDC, DIANTE DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE EM FAVOR DA RÉ – INADIMPLÊNCIA DO AUTOR – CONDENAÇÃO DA RÉ À RESTITUIÇÃO DAS PARCELAS ADIMPLIDAS, AINDA QUE MEDIANTE RETENÇÃO DE PERCENTUAL, NÃO ADMITIDA – NECESSÁRIA ALIENAÇÃO DO BEM, COM A ENTREGA AO AUTOR DA EVENTUAL IMPORTÂNCIA QUE SOBEJAR – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – SENTENÇA REFORMADA – INVERSÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – RECURSO PROVIDO. (TJPR – 9ª C. Cível – 0074678-93.2018.8.16.0014 – Londrina. Rel. Desembargador Domingos José Perfetto. Julgado em: 15/05/2021).

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM PACTO ADJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. PRETENSÃO DE RESCISÃO DA AVENÇA E RESTITUIÇÃO DE VALORES. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA, QUE DESCONSTITUIU O CONTRATO E DETERMINOU A RESTITUIÇÃO DE 80% DO MONTANTE ADIMPLIDO. IRRESIGNAÇÃO DA PARTE RÉ. PREVALÊNCIA DA LEI 9.514/97 SOBRE O CDC. 1. Relação jurídica de direito material regida pela Lei 9.514/97, que prevalece sobre o disposto no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de Lei Especial posterior, que instituiu regime jurídico próprio acerca do tema. Precedentes do STJ e do TJRJ. 2. Execução extrajudicial da garantia na forma prevista nos artigos 26 e 27 da Lei 9.514/97. Consolidação da propriedade na pessoa do credor fiduciário. Bem levado a leilão. Devedor que faz jus ao pagamento do saldo que sobejar do valor da arrematação, após o desconto da dívida, das despesas e dos encargos legais, conforme art. 27, §§§2º, 3º e 4º, da Lei 9.514/97. 3. Reforma da sentença para julgar improcedentes os pedidos. APELAÇÃO DO RÉU A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (TJRJ – 0000452-54.2017.8.19.0084 – APELAÇÃO. Des(a). WILSON DO NASCIMENTO REIS – Julgamento: 03/12/2020 – VIGÉSIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL – COMPRA E VENDA DE IMOVEL COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA – INADIMPLENCIA COMPRADOR – RESTITUIÇÃO INTEGRAL VALORES QUITADOS – IMPOSSIBILIDADE – LEI 9.514/97 – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – CDC. – Nos casos em que o comprador estiver inadimplente frente a contrato de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária, a forma de eventual restituição de valores, deverá observar as regras insculpidas na Lei n. 9.514/97. – Em virtude de regramento próprio, e sendo o comprador o responsável pela inadimplência, resta afastada a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.  (TJMG – Apelação Cível 1.0702.13.054576-8/001, Relator(a): Des.(a) Shirley Fenzi Bertão, 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 30/08/2018, publicação da súmula em 12/09/2018)

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTENRO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA C/C RESCISÃO CONTRATUAL C/C RESTITUIÇÃO DE VALORES. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, ART. 53. NÃO INCIDÊNCIA.

1. Ação de obrigação de fazer com pedido de antecipação de tutela c/c rescisão contratual c/c restituição de valores.

2. Ocorrendo o inadimplemento de devedor em contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, a quitação da dívida deverá observar a forma prevista nos arts. 26 e 27 da Lei n. 9.514/97, por se tratar de legislação específica, o que afasta, por consequência, a aplicação do art. 53 do CDC. Súmula 568/STJ.

3. Agravo interno não provido. (AgInt nos EDcl no AgInt no REsp n. 1.865.396/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/10/2020, DJe de 29/10/2020.)

Nas decisões acima colacionadas, inclusive no acórdão do STJ, adotou-se o entendimento de que a Lei 9.541/1997, por ser específica, afastaria a incidência do CDC.

A questão acerca da legislação aplicável é tão polêmica que chegou ao STJ, sob o rito dos recursos repetitivos, com a afetação dos Recursos Especiais n° 1.891.498 e 1.894.504.

O Tema 1.095 fixou a questão controvertida que será julgada pelo STJ: Definição da tese alusiva à prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia.

Em razão da afetação dos recursos, todas as ações que versem sobre o mesmo assunto deverão ser sobrestadas, na forma do artigo 1.037, II do Código de Processo Civil (CPC), o que significa que elas ficarão suspensas até o julgamento do STJ.

A pendência da controvérsia, contudo, não nos impede, com o devido respeito aos que defendem a tese contrária, de expor nossa opinião sobre o tema.

Como dito, a grande maioria dos empreendimentos imobiliários envolve uma relação de consumo. Se a disposição do CDC prevalecer sobre o regramento da alienação fiduciária, ela estará fadada ao fim.

Se, mesmo com o inadimplemento da obrigação pelo consumidor (devedor fiduciante), o credor for obrigado a devolver parte do que recebeu ao adquirente, mesmo nas hipóteses de o leilão ser frustrado, não haverá motivo para constituir a alienação fiduciária.

A garantia perderia sua razão de ser. E, com isso, tanto as instituições financeiras quanto as incorporadoras e loteadoras não terão condições de pactuar negócios de compra e venda de imóveis a prazo, pois não haverá segurança de que irão receber.

Em um mercado como esse, os empreendedores não poderiam mais fornecer crédito aos consumidores que, a qualquer tempo, poderiam se tornar inadimplentes e ainda receber quantias em restituição.

Além desse impasse com a legislação consumerista, existem as possíveis divergências de aplicação da Lei do Distrato nos contratos com alienação fiduciária. Trataremos desse ponto a seguir.

Lei do Distrato (Lei 13.786/2018)

Já falamos em nosso blog sobre a Lei do Distrato e as principais novidades trazidas por ela. Por isso, neste texto, restringiremos nossa abordagem ao aparente conflito entre ela e a Lei de Alienação Fiduciária.

Essa lei, também editada com um viés de proteção ao consumidor, estabelece os critérios para restituição dos adquirentes de imóveis que, por inadimplemento da dívida, sofrem com a resolução do contrato, ou, ainda, pelo distrato.

A resolução do contrato implica em sua extinção por inadimplemento de qualquer uma das partes.

Por sua vez, o distrato implica na extinção do contrato por convenção das partes.

Os critérios de restituição definidos em lei variam se a compra e venda foi celebrada no âmbito de incorporações imobiliárias (Lei 4.591/1964) ou de loteamento/desmembramento (Lei 6.766/1979). A depender do cenário, os valores pagos pelo adquirente deverão ser restituídos, autorizada a retenção pelo incorporador/loteador das verbas indicadas na tabela a seguir:

Incorporação Imobiliária (artigo 67-A)Parcelamento de solo (artigo 32-A)
Integralidade da comissão de corretagemIntegralidade da comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote
Multa, não superior a 25% do que foi pago. Se a incorporação estiver submetida ao regime de patrimônio de afetação, a multa poderá atingir 50% do que foi pago.Multa (cláusula penal, no geral), não superior a 10% do valor do contrato
Impostos reaisIPTU e tributos vinculados ao lote
Taxas de condomínio e contribuiçõesTaxas de condomínio e contribuições
Fruição do imóvel – 0,5% sobre o valor atualizado do contratoFruição do imóvel – 0,75% sobre o valor atualizado do contrato
Encargos e despesas contratuaisCustos da rescisão
Encargos moratórios
Se no regime de patrimônio de afetação, a restituição pode ocorrer em até 30 dia do habite-se. Se não estiver, o prazo é de 180 dias do desfazimento do contrato.Prazo para restituição de até 12 parcelas mensais, com início: (i) loteamentos finalizados, após 12 meses da rescisão; (ii) loteamentos em andamento: em até 180 dias do prazo de conclusão das obras.

No dispositivo inserido pela Lei de Distrato na Lei de Incorporação Imobiliária (artigo 67-A), há uma ressalva em seu §14, quando o contrato tiver previsão ou pacto adjeto de alienação fiduciária:

Art. 67-A. Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente:

(…)

§ 14. Nas hipóteses de leilão de imóvel objeto de contrato de compra e venda com pagamento parcelado, com ou sem garantia real, de promessa de compra e venda ou de cessão e de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, realizado o leilão no contexto de execução judicial ou de procedimento extrajudicial de execução ou de resolução, a restituição far-se-á de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva lei especial ou com as normas aplicáveis à execução em geral.

No artigo que trata dos loteamentos/desmembramentos, a previsão é similar:

Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:

(…)

§ 3º O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.

A redação dos parágrafos 14 e 3º pode gerar certa dúvida quanto à sua aplicação: (i) as regras de restituição e seus percentuais não se aplicam quando houver pacto de alienação fiduciária? (ii) aplicam-se os percentuais da Lei de Distrato cumulado às regras procedimentais da Lei 9.541/1997?

De um lado, o instituto da alienação fiduciária existe para garantir ao credor, no mínimo, o valor da dívida.

De outro, o valor da dívida nos contratos de compra e venda será, inevitavelmente, o valor do imóvel.

Caso se admita que o valor que pode ser retido pelo credor seja unicamente o que está previsto nos artigos 67-A e 32-A, novamente, desvirtua-se por completo o instituto da alienação fiduciária.

O ilustre civilista Flávio Tartuce defende a tese de que o crédito devido ao incorporador deverá ser calculado nos parâmetros previstos nos artigos 67-A e 32-A:

Assim, se um consumidor financiou o saldo devedor diretamente com o incorporador por meio de um contrato de compra e venda a preço parcelado com juros remuneratórios em coligação com um contrato de alienação fiduciária em garantia e se esse consumidor incorreu em inadimplência ou pleiteou a resilição unilateral do contrato de compra e venda, o valor total da dívida a ser executada deve ser calculada na forma do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 e, portanto, será correspondente ao somatório das rubricas previstas nos incisos I e II do caput do referido artigo com as rubricas dos incisos I a IV do § 2º do mesmo artigo. Esse valor é o crédito devido ao incorporador. Esse crédito poderá ser executado por meio do procedimento previsto na Lei nº 9.514/97 (leilão extrajudicial) e eventual devolução do saldo devedor será restituído ao adquirente na forma dessa lei, ou seja, não serão aplicados os largos prazos de devolução previstos nos §§ 5º, 6º e 7º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64.

(…)

Portanto, entendemos que, no caso de “financiamento direto” com o incorporador para pagamento do saldo devedor devido no momento da entrega das chaves, o § 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 somente se aplica para regras procedimentais e para o prazo de vencimento do valor residual a ser restituído ao adquirente, de modo que o cálculo da dívida a ser cobrada pelo alienante deverá ser o somatório das rubricas previstas nos incisos I e II do caput do art. 67-A e nos incisos I a IV do § 2º do art. 67-A. Ademais, nesse caso de financiamento direto com o incorporador, se o adquirente for consumidor, é nula cláusula contratual que estipule o cálculo da dívida a ser cobrada pelo alienante de modo diverso.

(TARTUCE, 2019. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/02/07/a-recente-lei-do-distrato-lei-no-13-786-2018-o-novo-cenario-juridico-dos-contratos-de-aquisicao-de-imoveis-em-regime-de-incorporacao-imobiliaria-ou-de-loteamento-parte-3/).

Com o devido respeito, ousamos discordar desse posicionamento.

Se o devedor contrai uma dívida de R$ 100.000,00 e dá em alienação fiduciária um imóvel avaliado em R$ 200.000,00, o imóvel deverá responder pela integralidade da dívida, ainda que isso corresponda a quantia maior do que os limites previstos na Lei de Distrato.

Se o imóvel não responder pelo adimplemento da dívida, qual o sentido de dá-lo em garantia?

Admitir a prevalência da Lei do Distrato sobre a Lei de Alienação Fiduciária tornaria mais gravosa a situação do loteador, que, por lei, é obrigado a promover o leilão judicial ou extrajudicial nesses casos: ele teria que arcar com as despesas do empreendimento, despesas do leilão e, ainda, restituir os valores que ultrapassarem 10% do valor do contrato ao adquirente?

Novamente, não querendo esgotar a discussão, mas sim buscando ponderar tais posicionamentos, não nos parece razoável essa posição.

Entendemos e defendemos, então, que a Lei do Distrato e seus percentuais somente se aplicam quando não houver cláusula ou pacto adjeto de alienação fiduciária.

Assim, quando o § 14 do artigo 67-A prevê que, em caso de leilão de imóvel com alienação fiduciária, deverão ser observados os critérios de restituição previstos na Lei 9.514/1997, os critérios mencionados pelo legislador se referem à restituição do saldo que sobejar do produto da alienação. Ou seja, o adquirente será restituído se, e somente se, o proveito da venda do imóvel for suficiente para quitar a integralidade da dívida.

De igual modo, quando o § 3° do artigo 32-A determina que o procedimento ali previsto não se aplica aos contratos que possuem pacto de alienação fiduciária, afasta-se por completo os critérios de restituição, seja de prazo ou de percentual, previstos no artigo.

Ainda que a situação possa parecer gravosa ao consumidor, existe a contratação livre e voluntária da alienação fiduciária. O consumidor adquire o bem sabendo dos riscos.

Ademais, a limitação dos valores a serem recebidos pelo Incorporador/Loteador que tem a propriedade fiduciária é invalidar o instituto a esses empreendedores, e tornar válida somente a alienação fiduciária constituída pela Instituição Financeira, que possui um capital milhões de vezes superior a pequenos empreendedores imobiliários.

Frisa-se que a Lei 9.541/1997 não restringe a constituição de alienação fiduciária às Instituições Financeiras. Então, porque os Incorporadores/Loteadores que a constituírem sofrerão unicamente com tal restrição de seu crédito?

Qualquer entendimento em contrário, a nosso ver, desconfigura e invalida a alienação fiduciária, o que, conforme exposto ao longo desse texto, pode trazer consequências desastrosas ao mercado imobiliário – o que, de certo, não é o que queremos ou o que o país precisa.

Conclusão

Após essa longa discussão, vimos que, apesar de eficaz, a alienação fiduciária sofre verdadeiros riscos, que, se concretizados, podem prejudicar todo o setor imobiliário.

Se é admitida uma restituição ao adquirente inadimplente em valor que supere o pagamento da dívida, a constituição da alienação fiduciária perde sua razão de ser e, com isso, há uma diminuição de receitas tributárias (ITBI e Imposto de Renda); diminui-se as linhas de crédito e os juros poderão atingir valores impagáveis; as chances de aquisição do imóvel próprio também serão diminutas… Enfim, uma série de consequências indesejáveis e prejudiciais a todos os envolvidos.

O julgamento do STJ do Tema 1.095 terá importante peso para a solução dessa controvérsia, que poderá pacificar não só o conflito com o CDC, mas também com a Lei de Distrato, caso prevaleça o entendimento de que a Lei aplicável quando houver pacto de alienação fiduciária é a Lei 9.541/1997.

Deixamos aqui nosso entendimento pela defesa da manutenção do instituto da alienação fiduciária, que permite que toda a engrenagem do sistema imobiliário continue a funcionar.

Esperamos que este artigo tenha sido útil para, ao menos, apresentar as divergências acerca da alienação fiduciária para que você, Incorporador/Loteador, possa se resguardar, principalmente no momento de assinatura dos seus contratos.

Temos diversos outros artigos que poderão trazer informações de grande valia para o seu negócio. Não deixe de ler nossas outras publicações!

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*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.

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