A atuação na construção civil traz consigo uma inevitável responsabilidade técnica e jurídica pela obra entregue.

Para além da Norma de Desempenho, sobre a qual já falamos aqui, algo que tira o sono dos empreendedores são os popularmente chamados vícios construtivos, ou, na linguagem técnica, manifestações patológicas da construção.

Se você atua com construção ou incorporação, certamente já sofreu ou conhece alguém que já foi atingido com alegações infundadas e exageradas de existência de vícios construtivos.

Essa discussão, por si só, tendo ou não o condomínio/proprietário razão, já é capaz de causar enorme dor de cabeça e prejuízo ao empreendedor, muito pela falta de conhecimento técnico daqueles que se aventuram nessas ações, mas, principalmente, pela carência de regulamentação específica sobre o tema.

Conhecer a Norma de Desempenho é muito importante, seguramente porque nela há informações eminentemente técnicas sobre o assunto e que, se aplicadas de forma correta, poderão ser um fator determinante para averiguação das atribuições, prazos e responsabilidades dos envolvidos na construção (construtor, projetista, fabricante, usuários etc.).

Nesse artigo, focaremos nos vícios construtivos, que, quando de fato existentes, normalmente decorrem do não cumprimento das normas técnicas, abordando, também, os assuntos que orbitam esse tema, inclusive as situações que podem blindar a responsabilização dos agentes construtivos e, claro, do proprietário.

Afinal, ele também é responsável pela conservação da edificação.

 

O que são vícios construtivos?

 

Vício é toda anomalia que torna o uso de determinada coisa inadequada aos fins para os quais ela se destina.

Desse modo, quando falamos em “vícios construtivos” estamos nos remetendo às falhas, imperfeições e deformidades que podem vir a surgir na construção.

Geralmente, todo vício realmente construtivo decorre de erros na elaboração do projeto ou na execução da obra, inclusive quanto ao material aplicado e à ausência de informações sobre a utilização ou manutenção daquele imóvel.

As infiltrações, fissuras, problemas com os revestimentos e nas tubulações, são exemplos claros de vícios construtivos que costumam sobrevir após a entrega do imóvel pela construtora/ incorporadora, à medida que a edificação vai sendo usada pelos proprietários ao longo do tempo.

Ocorre que muitos dos problemas anunciados como “vícios construtivos”, principalmente em ações judiciais movidas por condomínios já no limiar de expiração do prazo legal de garantia, não são, realmente, patologias relacionadas à construção,mas efeitos naturais do decurso do tempo e do uso do imóvel (fim da vida útil de determinando componente ou desgaste causado por fatores externos) ou problema advindos de mau uso ou falta de manutenção preventiva adequada.

Assim, é de extrema importância saber diferenciar se um problema é, de fato, um vício construtivo ou se o defeito advém de ato imputável ao próprio proprietário/possuidor do imóvel.

Assim, a aferição da natureza do defeito é imprescindível para delimitar eventual responsabilidade do construtor/incorporador do imóvel, o que é constatado a partir de uma perícia técnica.

Mas como essa perícia é elaborada? Quais são os parâmetros para sua realização?

Para responder a esse questionamento, façamos uma breve análise da NBR 13.752/96.

 

NBR 13.752/96

 

A NBR 13.752/96 fixa diretrizes, conceitos e critérios para realização de perícias de engenharia na construção civil, padronizando os procedimentos e métodos a serem adotados nessas diligências.

Por sua vez, a perícia é uma análise técnica feita por um profissional habilitado, que no caso dos vícios construtivos será, preferencialmente, um engenheiro civil, escolhido ou designado para avaliar a situação de determinada edificação para esclarecer fatos, identificar causas e sugerir soluções dentre outros.

Um laudo pericial bem elaborado, para evitar discricionariedades ou quaisquer omissões, deve se ater às regras previstas na NBR 13.752/96.

Foge ao escopo deste artigo, todavia, a análise pormenorizada do conteúdo da NBR 13.752/96, não só por ela um documento eminentemente técnico, voltada para profissionais de engenharia, mas porque muitos de seus conceitos já serão explorados nos tópicos a seguir.

 

Tipos de vícios

 

Conquanto a ideia de vícios construtivos seja clara para a maioria das pessoas, mormente pelo seu diagnóstico restrito às construções, é preciso tecer alguns comentários sobre as suas espécies e a forma como se manifestam.

Nesse sentido, a legislação nos remete à três tipos de vícios: os chamados vícios aparentes, os vícios ocultos e os vícios de solidez e segurança, todos devidamente especificados na NBR 13752/96.

 

Vícios aparentes

 

Os vícios aparentes, como o próprio nome já diz, são aqueles que podem ser percebidos a olho nu, sem auxílio de ferramentas ou necessidade de conhecimento técnico aprofundado, por qualquer pessoa.

São vícios aparentes, por exemplo, uma porta sem maçaneta, um revestimento trincado ou quebrado e a falta de uma louça sanitária.

 

Vícios ocultos

 

Ao contrário dos vícios aparentes, os vícios ocultos são aqueles que não podem ser constatados a olho nu,geralmente por terem sido camuflados ou por surgirem apenas após determinado tempo de uso da coisa.

No caso desses vícios, por vezes, o diagnóstico apenas acontece por uma pessoa com formação técnica.

São exemplos de vícios ocultos o descolamento de revestimentos por mau assentamento, uma má projeção de um quadro elétrico e um entupimento de tubulação.

 

Vícios de segurança e solidez

 

Sob a égide do tema “vícios construtivos”, a espécie segurança e solidez, sem sombra de dúvidas, é a mais importante.

Isso porque, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, o conceito de solidez e segurança não se vincula apenas ao risco de ruína ou desmoronamento da edificação, mas também a todos os defeitos que podem tornar a construção perigosa de se habitar.

Assim, os vícios de solidez e segurança estão intimamente ligados às infiltrações generalizadas de água nos tetos e nas paredes, umidades significativas, perigos de incêndio, enfim, tudo aquilo que cause um dano estrutural ou à saúde dos moradores.

 

Classificação das patologias

 

Enquanto a patologia construtiva é um gênero, referindo-se a qualquer problema observado em uma construção, os vícios construtivos são espécie.

O estudo das patologias construtivas, realizado por peritos e espelhados em laudos, visam a determinar as causas e as consequências dos problemas manifestados em uma construção.

Existem quatros tipos de patologias, discriminadas na NBR 13.752/96, que são caracterizadas especialmente pelas suas origens. São elas: i) Patologia Endógena; ii) Patologia Funcional; iii) Patologia Natural; e a iv) Patologia Exógena.

 

Patologia endógena

 

A Patologia Endógena é derivada de falhas internas na construção, como por exemplo, utilização de materiais inadequados ou de qualidade questionável, erros no planejamento ou execução da obra e inobservância das normas técnicas.

Em bom português, a patologia endógena é o popular vício construtivo.

 

Patologia funcional

 

Já a Patologia Funcional, é aquele problema que decorre da realização de manutenção inadequada no imóvel, ou, em alguns casos, até a ausência dela, reduzindo o tempo de vida útil dos sistemas construtivos.

 Na grande maioria das vezes, esse tipo de patologia é gerado pelos próprios usuários (moradores ou proprietários) que não seguem as orientações de conservação da construção, o que se deve muito a nossa cultura de se enxergar o imóvel como um bem incorruptível e eterno.

 

Patologias naturais e exógenas

 

As Patologias Naturais e Exógenas são, ambas, causadas por fatores externos à construção.

Enquanto a Patologia Natural provém de fenômenos da natureza, tais como tempestades, furacões, raios, ações climáticas prolongadas no tempo, isto é, acontecimentos dissociados da interferência da ação humana, a Patologia Exógena está ligada a danos causados por obras de vizinhos ou desconformidades dos imóveis confrontantes, ou seja, decorrem de ação humana externa.

 

Garantias da construção

 

Como em todo produto ou serviço, a construção de um imóvel também precisa ser assegurada pela construtora/incorporadora quanto ao uso do bem, por determinado tempo após a entrega, sem que nele se manifestem eventuais perturbações ou riscos de inutilização.

Em se tratando de uma edificação, a garantia é inerente à própria coisa, vez que dela se espera uma qualidade de funcionamento e desempenho muito maior do que em relação a outros bens e serviços consumíveis no mercado.

Frisa-se que existem dois tipos de garantia: a decorrente da lei e a decorrente do contrato.

Por certo, toda garantia só pode ser exigível caso o bem adquirido tenha sido utilizado de maneira correta pelo consumidor (morador/proprietário) e, mais, que todos os cuidados (manutenção) que foram orientados pelo fornecedor (construtora/incorporadora) para conservação naquele período tenham sido seguidos.

Não havendo o uso adequado ou os cuidados necessários para conservação pelo usuário, ocorrerá a perda da garantia.

Analogamente, se o proprietário de um veículo deixa de realizar as manutenções preventivas previstas no manual e um ou mais componentes vêm a apresentar defeito, naturalmente a garantia de fábrica, ainda que o prazo original ainda esteja em vigor, terá sido perdida. O mesmo ocorre (ou pelo menos deveria ocorrer, se a legislação fosse seguida à risca), com o imóvel.

 

Garantia legal

 

A garantia legal de qualquer obra, que não se confunde com prazos de prescrição ou decadência, está contida no artigo 618 do Código Civil:

 

Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito

 

Embora a lei não estabeleça com clareza o marco inicial do prazo de 5 (cinco) anos, já se consolidou há muito o entendimento de que ele passa a fluir a partir da emissão do “habite-se” do empreendimento, que é o atestado formal e oficial de que determinada obra foi concluída de acordo com o projeto arquitetônico previamente aprovado.

Durante esse prazo, a empresa responsável pela edificação tem culpa presumida em relação aos vícios de solidez e segurança, ocorrendo aqui o que chamamos de responsabilidade objetiva pela qualidade da obra, ou seja, que independe de comprovação de culpa.

Se um vício construtivo se manifestar em tal prazo (ou seja, uma patologia endógena), sem que sua causa possa ser atribuída à culpa exclusiva do proprietário (culpa que se observa, por exemplo, se a ausência de realização de uma manutenção preventiva deu origem à patologia), a construtora será inevitavelmente responsável pelo reparo.

Não há clareza na lei nem em nenhuma norma técnica, todavia, sobre uma possível renovação do prazo quando o reparo é realizado dentro da garantia.

Parece-nos razoável supor que, a não ser que uma nova manifestação patológica esteja diretamente relacionada com o vício original, sugerindo um reparo deficiente ou paliativo, não há renovação do prazo de garantia original.

Afinal, isso poderia gerar uma responsabilidade eterna da construtora pela obra, o que não se admite por lei.

Há de se ter em mente que o que é garantido é que aquele determinada construção, se corretamente mantida (ou seja, com manutenções preventivas rigorosamente em dia), não apresentará patologias relacionadas a projeção ou execução da obra durante os primeiros 5 (cinco) anos.

Como, depois de tal prazo, não há mais garantia legal, então se um reparo feito, por exemplo, no 2º ano depois da entrega do imóvel, for suficiente para solucionar aquela patologia até o 6º ano, eventual reaparecimento não estaria coberto pela garantia, sendo seu reparo de responsabilidade do proprietário.

Também é comum ocorrer dúvida a respeito da natureza do prazo previsto no artigo 618 do Código Civil, que, como já dito, é de garantia e não prescricional.

É importante que isso fique claro e que não haja confusões, tendo em vista que são coisas absolutamente diferentes.

A garantia, nesse caso, diz respeito ao tempo que a construtora/incorporada deve resguardar a qualidade da obra, enquanto a prescrição é o prazo que os usuários dispõem para pleitear, judicialmente, algum tipo de indenização ou qualquer outra pretensão.

A prescrição, portanto, não atinge o direito em si (a garantia), mas a pretensão daquele prejudicado para demandar, contra a construtora/incorporadora, o reparo do vício.

Ao contrário do prazo de garantia, que se inicia na data do “habite-se”, o prazo de prescrição começa a fluir da data de aparecimento do vício.

Embora o Código Civil preveja, no inciso V do § 3º do artigo 206, que é de 3 (três) anos o prazo de prescrição para a pretensão de reparação civil (que nada mais é do que a discussão de indenização em virtude de determinada obrigação descumprida por uma das partes), infelizmente o entendimento já pacificado no Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se aplicar o prazo geral de prescrição, que é de 10 (dez) anos, para a pretensão de reparo de vícios construtivos.

Logo, se determinada patologia endógena vier a se manifestar no penúltimo mês do 4º ano da construção, o proprietário ainda terá mais 10 (dez) anos para discutir a questão, o que, além de injusto, não é nem um pouco razoável, motivando aventuras jurídicas contra as construtoras e incorporadoras.

Para além do prazo de prescrição para a pretensão de indenização (que difere da pretensão de reparo, observe), existe um prazo de decadência previsto no parágrafo único do artigo 618 do Código Civil, já transcrito acima.

Grosso modo, a decadência, embora tenha um efeito parecido com o da prescrição, dela difere por atingir não a pretensão (ligada ao aspecto processual, ao direito de demandar), mas o direito em si.

Logo, se é fixado um prazo decadencial para um direito de garantia, se a decadência se operar, o proprietário perde o direito em si.

É o que diz, textualmente, o parágrafo único do artigo 618, que, pela sua relevância, merece ser novamente transcrito:

 

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.

 

O que isso quer dizer? Se um vício construtivo se manifestar dentro do prazo de garantia (por exemplo, no 3º ano de vida da construção), e o proprietário não apresentar a ação judicial nos 180 (cento e oitenta) dias seguintes ao conhecimento do defeito, ele perderá o próprio direito de garantia, ainda que o prazo de 5 (cinco) anos não tenha escoado por completo.

Embora a lei seja muito clara, lamentavelmente o Poder Judiciário, na grande maioria das vezes, simplesmente ignora a existência do parágrafo único do artigo 618 do Código Civil, condenando construtoras e incorporadoras a reparar vícios fora da garantia ou com decadência já implementada, de forma superficial e ilegal.

Ademais, embora o prazo de 180 (cento e oitenta) dias seja gramaticalmente decadencial, a doutrina e a jurisprudência não o tratam dessa forma.

Por isso, o entendimento é que, mesmo transcorrido o prazo de 180 (cento e oitenta) dias do surgimento vício, o proprietário poderá ajuizar uma ação de indenização contra a construtora/incorporadora, sujeito à já analisada prescrição de 10 (dez) anos.

A diferença, aqui, é que, pelo menos em tese, a construtora não poderá ser condenada à obrigação de fazer, ou seja, não terá, ela própria, que providenciar o reparo, mas poderá (e provavelmente será) ser condenada a indenizar o proprietário pelo valor do dano.

Todavia, se assim acontecer, haverá o afastamento da responsabilidade objetiva, devendo o demandante comprovar a culpa da construtora/incorporadora.

Em decorrência desse entendimento que nem sempre é claro ou incontroverso, é importante a presença de um profissional capacitado para garantir a sua segurança antes, durante e após a conclusão da sua obra.

Os instrumentos a serem elaborados em casos de construções e incorporações devem especificar, adequadamente, os critérios em caso de eventuais responsabilizações.

Não deixe, portanto, de contratar profissionais especializados para elaborar os contratos de promessa de compra e venda, os manuais de manutenção e garantias e os demais documentos da incorporação.

 

Garantia contratual

 

A garantia contratual, diferentemente da legal, é uma mera liberalidade da construtora/ incorporadora, figurando como um prazo complementar àquele previsto no artigo 618 do Código Civil.

Por ser “complementar”, a garantia contratual não pode regular um prazo menor do que o prazo legal, que é obrigatório e inderrogável.

Nesse contexto, as partes contratantes são livres para estipularem (excetuada a diminuição do prazo) o que bem entenderem, pelo que será exigível apenas aquilo estabelecido na cláusula ou em contrato específico.

Não é, todavia, comum a extensão do prazo legal de garantia.

 

Responsabilidades dos agentes construtivos

 

São denominados “agentes construtivos” toda figura que fez parte do planejamento e da execução das obras. Os projetistas, engenheiros, arquitetos, fabricantes de materiais, construtoras e incorporadoras são exemplos de agentes construtivos.

Aliás, esses são os que normalmente estão envolvidos em qualquer tipo de edificação, sendo certo que, pela sua expertise e atuação, serão responsáveis pelos erros que eventualmente cometerem no exercício da atividade, sobretudo quanto aos vícios construtivos.

Nessa análise, é preciso entender que, por mais que muitos vícios possam decorrer de falhas não só da construtora ou da incorporadora, perante o consumidor (usuário) ela é a responsável pela garantia da qualidade da edificação e, por isso, pode ser demandada ainda que o erro seja, por exemplo, do fabricante de materiais.

Obviamente, ocorrendo a condenação da construtora/incorporadora por erros de outros agentes construtivos, ela terá direito de regresso para reaver os valores despendidos, seja com a correção do erro ou com a indenização.

Assim, fica demonstrada mais uma vez a importância de se ter bons profissionais alinhados ao seu interesse e do seu negócio, para evitar problemas futuros e, caso eles venham a aparecer, que você possua respaldo documental e legal para elidir maiores danos.

 

Vida útil e desempenho

 

Como mencionado em tópico anterior, a Norma de Desempenho tem papel fundamental na aferição de responsabilidades dos agentes construtivos e, principalmente, sobre o tempo que se espera que os sistemas daquela construção durem.

Nessa toada, embora não tenha força de lei, a Norma de Desempenho tem o condão de fundamentar e orientar as atribuições dos agentes e as validades da garantia, ainda mais em meio às controvérsias judiciais.

Por sua relevância técnica, é nessa normatização que se encontra o prazo de vida útil de cada sistema construtivo (estruturais, de pisos, vedações, de coberturas e hidrossanitários), o que, em meio a uma ausência regulatória legal, é primordial para aferição de direitos e deveres.

Em outras palavras, sempre que houver a reclamação de algum vício construtivo por parte dos usuários é preciso, antes de tudo, atestar se tal vício se manifestou em um sistema que ainda está com sua vida útil em curso.

Caso contrário, é inconcebível se exigir a garantia da coisa.

Por razões óbvias, não há como assegurar o funcionamento e o desempenho de algo cujo prazo de vida útil já se escoou, sobretudo por não haver mais a expectativa do comportamento satisfatório do sistema construído nesse sentido.

Portanto, é fundamental o conhecimento e atuação técnica em conformidade com o disposto na Norma de Desempenho.

 

Incorporação Imobiliária - Lage e Portilho Jardim Advocacia e Consultoria

 

Responsabilidade dos usuários e a perda da garantia

 

Se, por um lado, os agentes construtivos são responsáveis por assegurar o funcionamento adequado do imóvel, sem a aparição de vícios durante o prazo de vida útil, por outro, os usuários são responsáveis pelo uso adequado do bem e pela realização das manutenções preventivas para sua conservação ao longo do tempo.

Todavia, em virtude de um equivocado “senso comum”, por vezes os cuidados em relação aos sistemas construtivos do imóvel são totalmente negligenciados.

Em tempos que se fala muito em uma verdadeira indústria de ações judiciais que tratam de vícios construtivos, é preciso discernir o que, efetivamente, são vícios decorrentes de erros de projeto ou execução e o que são patologias funcionais causadas pelos próprios usuários (moradores/ proprietários).

Nesse sentido, a existência de um manual de uso do proprietário que indique as diligências que devam ser realizadas é fundamental, especialmente para a comprovação de que se havia a ciência do que fazer, quando fazer e como fazer para conservar a vida útil dos componentes da edificação.

Para além do manual, cláusulas bem elaboradas no contrato de promessa de compra e venda podem ser bastante úteis na defesa da construtora/incorporadora em discussões a respeito de vícios construtivos. Por exemplo, deve-se exigir que o proprietário não só faça as manutenções preventivas como comprove documentalmente que as fez, sob pena de perda do direito de garantia.

A Norma de Desempenho também prevê tais responsabilidades dos usuários, que, se não tomadas, ensejam (ou pelo menos deveriam ensejar) na perda da garantia.

Aqui, o desafio é com relação à educação dos moradores e, sobretudo do Poder Judiciário, que, por vezes, desconhece essa necessidade vital para a garantia do uso do imóvel livre de vícios e perturbações.

Afinal, por maior que seja a diligência da construtora/incorporadora em executar a obra, assim como a qualidade dos materiais empregados na construção, uma boa construção não sobrevive com desempenho adequado se não preservada por aqueles que a usam diariamente.

 

Necessidade de mudança do paradigma jurisprudencial

 

Atualmente, pode-se afirmar que em grande parte das demandas a alegação de vícios construtivos é apenas um pretexto cuja finalidade principal é o recebimento de indenizações em desfavor das construtoras/ incorporadoras.

Nota-se, nas incontáveis ações que surgem diariamente, que o pleito dos reclamantes quase nunca é a correção daquele vício em específico que surgiu, o que, na construção civil, é algo completamente natural de acontecer, mas sim a busca clara por indenizações vultosas.

Esse tipo de conduta orquestrada não é nem de longe benéfica aos próprios usuários, uma vez que, pela crescente judicialização desse tema, as empresas e empreendedores do ramo imobiliário precisam calcular esse tipo de risco na formação do preço dos imóveis, impactando diretamente no bolso do consumidor, além de se blindarem previamente com assessoria jurídica adequada, cada vez mais preparada para o combate a esse tipo de caso.

Ajustes na construção sempre existiram e sempre vão existir, justamente por se tratar de um produto que envolve uma infinidade de materiais e serviços para a montagem do seu objeto final e que, assim como qualquer obra humana, não é eterno.

Após a entrega do imóvel, é normal que a empresa responsável tenha que dar assistência e efetuar algumas correções, o que é algo inerente à atividade. O próprio assentamento da construção no solo, um movimento natural e esperado, é capaz de causar pequenas fissuras e imperfeições.

Ademais, deve-se lembrar que a construção civil é artesanal, feita com mão de obra predominantemente humana, pelo menos enquanto a tecnologia não permitir que máquinas façam o trabalho.

Todavia, embora a construção civil esteja muito bem alinhada quanto aos regramentos técnicos de qualidade e desempenho, há um desconhecimento do Judiciário sobre assuntos específicos que precisariam ser levados em consideração na hora dos julgamentos dos vícios e que, por ausência de requisitos legais, são absolutamente ignorados.

Nesse ponto, a legislação sobre o tema é antiga e bem econômica, inexistindo uma classificação dos vícios construtivos de acordo com seu grau de importância, fomentando ainda mais julgados rasos e genéricos.

Embora a solidez e a segurança sejam de extrema importância, são questões básicas diante da infinitude de vícios que podem existir ao longo do uso do imóvel. Se pensarmos bem, vícios de acabamento, por exemplo, não geram nenhum risco à habitabilidade do imóvel e não estão vinculados à estrutura e solidez do bem.

Entretanto, em muitos casos as decisões consideram o mesmo prazo de 5 (cinco) anos para quaisquer vícios, por mínimos e irrelevantes que sejam. Ignora-se tanto o prazo decadencial quanto o manual de garantias, além do fato de determinados componentes da construção terem vida útil bastante reduzida, como, por exemplo, os silicones aplicados na vedação das esquadrias e os rejuntes entre pedras e cerâmicas.

Um batente da porta que está torto não pode, obviamente, ser tratado com o mesmo grau de importância de defeitos que abalem a estrutura e a estabilidade do imóvel. São situações completamente diferentes e assim precisam ser tratadas.

Nesse sentido, uma mudança de entendimento do Judiciário se faz necessária para que se enfrente de forma tecnicamente correta a discussão, aplicando prazos de garantia compatíveis com os tipos de vícios reclamados, seja por analogia ou proporcionalidade, com base em sugestões técnicas e na vida útil do produto.

A ausência de regra legislativa clara não pode servir como benefício às diversas ações que vêm sendo ajuizadas nesse sentido, que, como dito, almejam principalmente a obtenção de dinheiro e não dos reparos efetivos, sendo esse outro ponto que merece atenção do Poder Judiciário.

Outro ponto que precisa ser mudado é a omissão do Poder Judiciário quanto aos deveres dos usuários do imóvel, sobretudo com a demonstração do uso adequado do bem e realizações de manutenções preventivas, conforme orientado pela empresa responsável pela construção.

Enfim, certo é que, como um importante ramo da economia, a construção não pode ficar refém das obscuridades que assolam esse tema.

 

Prazos prescricionais e decadenciais

 

Embora já tenhamos falado, no tópico sobre a garantia legal, da prescrição e da decadência, pela relevância de tais institutos na discussão, a abordagem será aprofundada.

Primeiramente, é importante diferenciar os prazos prescricionais e os decadenciais.

Na prescrição, há a perda da pretensão, ou seja, o direito continua existindo, você só não pode mais exigi-lo.

Por sua vez, a decadência é a perda do próprio direito pela ausência de seu exercício em determinado prazo.

Nesse caso, por mais que a maioria das ações judiciais que envolvem vícios construtivos almejem unicamente o pagamento de indenizações, e não de reparos ou qualquer outra solução fática do problema, é de se ponderar os diversos tipos de pedidos e os prazos (prescricionais e decadenciais) que os envolvem.

Há uma mistura de aplicações, nesse sentido, dos prazos previstos tanto na legislação civil, quanto na consumerista, trazendo diversas possibilidades e correntes interpretativas, a depender da relação entre as partes.

Veja-se as possibilidades:

 

Prazos para reclamações de vícios construtivos circa rem

 

Prazos para reclamações de vícios construtivos extra rem
Esses quadros explicativos foram espelhados na doutrina de Carlos Del Mar Pinto, intitulado “Direito na Construção Civil” (Editora Pini, 2015, p. 304 e 305).

 

Como se vê, os prazos são diferentes a depender dos vícios e da forma como se manifestam.

 

Estratégia de defesa das construtoras/incorporadoras

 

Com base em tudo o que foi exposto nesse artigo, fica clara a nebulosidade que ainda circunda os vícios construtivos, mormente por estarmos diante de um Poder Judiciário que ignora a obrigação legal e contratual dos usuários de realizar as manutenções preventivas do bem imóvel.

É muito difícil para alguns, nesse cenário, informar e demonstrar que a inobservância do dever dos usuários quanto às manutenções regulares causa uma degradação e uma queda na vida útil da construção.

Todavia, certo é que algumas medidas podem ser adotadas para mitigar esses riscos.

Além de todo o dever de aplicação das normas, execução correta da obra e fornecimento das orientações, os laudos periciais também exercem hoje um papel fundamental nessa blindagem jurídica sobre o surgimento de eventuais vícios construtivos.

É por meio dos laudos que o construtor/incorporador buscará subsídios para demonstrar que a sua função foi realizada de forma correta.

Uma questão fundamental, por exemplo, é realizar, antes do início das obras, um relatório de vistoria de vizinhança ao entorno da construção, justamente para se resguardar de qualquer reclamação posterior sobre vícios que já subsistiam naquela unidade (a chamada “vistoria cautelar”).

Outro laudo imprescindível é o de conclusão de obra, que servirá para demonstrar que todas as características dos sistemas construtivos da edificação estão regulares no momento da sua entrega.

O laudo de auditoria de manutenção, que, inclusive, é pouco realizado pelas empresas, também figura como um documento muito importante na hora de se comprovar que os vícios decorreram da falta de manutenções regulares.

A produção desse laudo é hábil a demonstrar que o construtor não “fecha os olhos” após a entrega da obra, deixando claro a sua ciência sobre a sua responsabilidade de prestar assistência àquele condomínio ou edificação durante determinado período.

Ele funciona como um checklist que avaliará se os usuários executaram o programa de manutenção e se estão atendendo regularmente às obrigações previstas no manual de uso das áreas comuns e no manual do proprietário.

A elaboração de tais laudos, somada a uma boa execução da obra e uma consultoria jurídica especializada, criam uma base documental e argumentativa muito sólida para a construtora/ incorporadora, que terá um poder muito maior de esclarecimento dos fatos ao Poder Judiciário, diminuindo os riscos de uma responsabilização injusta.

Ademais, esse tipo de ação também serve como medidor de alerta para os usuários (síndicos, moradores etc.) sobre o que precisa ser feito, e acaba por servir como um instrumento que promove a educação nesse sentido.

Isso, além da redução dos riscos, também diminui os gastos que seriam despendidos em eventual lide e, sobretudo, mantém o bom nome da empresa no mercado.

 

Conclusão

 

Vício construtivo ainda é um tema bastante carente de regulamentações legislativas, o que gera uma constante divergência de entendimentos do Poder Judiciário no julgamento de tais demandas.

O que está ao alcance das construtoras e incorporadoras, podendo ser feito com uma mínima gestão pós-obra, é exigir que tanto o condomínio quanto os proprietários de unidades autônomas cumpram o plano de manutenção preventiva.

Essa cobrança pode ser feita, por exemplo, com o envio períodico de notificações extrajudiciais.

Fazendo isso, no mínimo o empreendedor garante a produção de um vasto acervo documental técnico para, se necessário, se defender com maior segurança em uma discussão futura, facilitando, ademais, a compreensão dos envolvidos nessa relação.

Mas não é só.

O trabalho também perpassa por uma mudança cultural sobre o modo que se enxerga um imóvel e as considerações de todas as variáveis que orbitam uma construção, que invariavelmente precisará de ajustes após a sua entrega, o que não significa que a construtora/ incorporadora será responsável.

Esperamos que esse conteúdo lhe tenha sido, de alguma forma, útil. Não deixe de conferir, também, nossos conteúdos anteriores. Temos artigos sobre os mais variados temas que permeiam a incorporação imobiliária.

Para receber semanalmente e em primeira mão nossas próximas publicações, cadastre-se em nossa newsletter logo abaixo.

Você também pode deixar um comentário e nos avaliar no Google. Ficaremos muito felizes com o seu feedback!

*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.

Posts relacionados
Share This