Quando escrevemos, há pouco mais de um ano, sobre as características principais do condomínio de lotes, a sua principal fonte normativa, qual seja, o artigo 1.358-A do Código Civil, trazia em seu parágrafo segundo a determinação de que seria aplicável, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística.
Embora se pudesse deduzir, da remissão às regras do condomínio edilício, que seria aplicável o regime da incorporação imobiliária, parte da doutrina especializada chegou a defender a aplicação integral da Lei 6.766/1979, inclusive no que se refere à etapa de registro do empreendimento, em função da ressalva “respeitada a legislação urbanística”, contida no citado parágrafo segundo, e de alterações também realizadas na referida Lei de Parcelamento do Solo.
Do nosso lado, sempre defendemos que, por suas características intrínsecas, o condomínio de lotes deveria ser aprovado, registrado e executado seguindo o regime da incorporação imobiliária, mas foi só em 2022, com o advento da Lei 14.382/2022, que o legislador colocou um fim à discussão teórica.
Com a alteração do parágrafo segundo do artigo 1.358-A do Código Civil, eis o que hoje temos lançado:
Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
§ 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
§ 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes: (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)
I – o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística; e (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
II – o regime jurídico das incorporações imobiliárias de que trata o Capítulo I do Título II da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o empreendedor ao incorporador quanto aos aspectos civis e registrários. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
§ 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
De novidade, apenas o texto do inciso II, pois o inciso I já existia como parte do primitivo parágrafo segundo.
Mas, se agora o legislador deixou claro que se aplica o regime jurídico das incorporações imobiliárias (e não o regime jurídico do parcelamento do solo), o que significa “equiparar o empreendedor ao incorporador quanto aos aspectos civis e registrários”? Será que essa redação está adequada?
Qual é, ademais, a “legislação urbanística” que o projeto de qualquer condomínio de lotes deve respeitar?
Para além disso, em que medida o esclarecimento legislativo afeta as características do condomínio de lotes?
É que buscaremos responder neste artigo, revisitando essa figura tão instigante do Direito Imobiliário.
Índice
O aspecto urbanístico
Comecemos nossa análise pelo aspecto urbanístico já que, em grande parte, é ele que vai direcionar o processo de concepção, aprovação e execução do condomínio de lotes.
Anotamos, em nossa primeira abordagem do condomínio de lotes, que apesar de ele gerar áreas particulares, sem acesso ao público geral, como qualquer outro condomínio edilício, não se poderia descuidar da harmonização do empreendimento ao seu entorno, com respeito das normas urbanísticas.
O Município pode e deve se preocupar com a integração de seu território, impedindo a criação de bolsões e ilhas “exclusivas” dentro da cidade.
Já respondendo uma das perguntas formuladas na introdução, defendemos que, quando o legislador federal prega “respeito à legislação urbanística”, ele está se referindo muito mais às leis municipais do que à Lei Federal de Parcelamento do Solo ou mesmo ao Estatuto da Cidade, embora ambos os diplomas federais contenham inúmeras normas de direito urbanístico.
Isso porque a Constituição Federal (artigo 30, incisos I e VIII) atribui aos Municípios competência não só para legislar sobre assuntos de interesse local, mas também para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Quando se pensa, portanto, em cidade, em organização e planejamento do solo urbano, o principal “criador, gestor e fiscal” será, sempre, o Município.
Nesse contexto, se o condomínio de lotes, para ser implantado, precisa respeitar a legislação urbanística, o projeto deverá, necessariamente, se guiar pelas previsões da legislação municipal.
Possibilidade de aprovação do condomínio de lotes sem prévia lei municipal
E se não houver lei municipal específica regulando o condomínio de lotes? Ainda assim posso implantar um empreendimento dessa natureza?
Bem, essa é uma discussão polêmica e parte considerável da mais autorizada doutrina defende que não.
Nossa resposta, todavia, é: depende.
Não há dúvida de que o melhor e mais desejável cenário é que haja, sempre, uma lei municipal tratando especificamente do condomínio de lotes e regulando temas como (i) área máxima do empreendimento; (ii) necessidade ou não de prévio parcelamento para implantação do condomínio de lotes; (iii) obrigação ou não de doação de áreas ao Município; (iv) restrições urbanísticas; (v) tamanho mínimo dos “lotes”, dentre outros, e, quando o empreendedor se deparar com a ausência da base normativa local, ele deve procurar as autoridades públicas (membros dos Poderes Executivo e/ou Legislativo) e sugerir a promulgação de uma lei.
Mas, na impossibilidade de se seguir esse caminho ideal, entendemos que, se o plano diretor e/ou a lei de uso e ocupação do solo do Município trouxerem elementos suficientes para se regular, diretamente ou por analogia, a aprovação do projeto do condomínio de lotes, a possibilidade dessa aprovação, embora casuística – e sujeita, portanto, a uma maior discricionariedade do Executivo – não é, a priori, vedada por lei.
Em outras palavras, se o conjunto normativo municipal contiver suficientes parâmetros urbanísticos aplicáveis ao parcelamento e, principalmente, ao uso do solo urbano, não há nada que vede, salvo melhor juízo, a aprovação do projeto de condomínio de lotes.
A rota natural a ser seguida aqui, como já defendido em nossa primeira análise do instituto, é primeiro pedir ao Município as diretrizes para a elaboração do projeto, assim como se faria com um projeto de parcelamento.
Essas diretrizes acabariam por suprir eventual omissão da legislação urbanística no que se refere aos parâmetros urbanísticos do condomínio de lotes, pois poderiam, tecnicamente, indicar os limites e restrições necessárias para compatibilização do projeto ao plano de desenvolvimento urbano.
É claro que, se a lei específica existir, a segurança jurídica ao empreendedor é muito maior, pois o espaço para discricionariedade é consideravelmente reduzido.
Possíveis restrições urbanísticas
O que é mais importante entender, quanto ao aspecto urbanístico, é que nenhum projeto de condomínio de lotes pode se distanciar da legislação urbanística municipal.
O instituto não foi concebido para legitimar a criação de microcidades exclusivas para classes de rendas mais altas; mesmo que se permita a “privatização” de áreas maiores que a ocupada por prédios ou casas, ainda assim o condomínio de lotes precisa se integrar à cidade e respeitar os parâmetros urbanísticos, ou seja, ele não é “terra sem lei”.
O Município pode, por exemplo, limitar a área máxima do empreendimento, determinar a divisão de um projeto em dois ou mais para que vias públicas passem entre eles, de forma a impedir a interrupção do fluxo de veículos, proibir o desdobro de lotes, dentre outras restrições.
Um erro, aliás, que vem sendo comum, é a falsa expectativa, por uma parte mais “desavisada” do mercado imobiliário, de que o condomínio de lotes seria uma forma de contornar um dos principais “ônus” do processo de parcelamento de solo, que é a obrigatoriedade de doação de parte da gleba ao Município para implantação dos equipamentos urbanos e comunitários.
Isso não é verdade!
Embora o percentual de doação exigido pelas legislações municipais que já tratam do condomínio de lotes possa ser inferior àquele do processo de parcelamento do solo, o empreendedor não ficará livre da obrigação, e isso tem uma explicação bastante lógica.
Explico: grande parte da área doada ao Município no processo de parcelamento do solo é composta (i) pelas vias de circulação (ii) pelos equipamentos urbanos de escoamento de águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável e energia elétrica, e (iii) por espaços livres de uso público.
No condomínio de lotes, esses três conjuntos (ou pelo menos parte deles, quando se pensa em espaços livres de uso público) estarão localizados dentro do perímetro do empreendimento e não serão computados como área pública.
Logo, necessita-se de uma área consideravelmente menor, em relação ao loteamento, para implantação do “restante”, que serão os chamados equipamentos comunitários (escola, postos de saúde, espaços de cultura e lazer etc.) e parte dos espaços livres de uso público (que normalmente dão origem a praças e parques).
Essa área se localizará fora do perímetro do condomínio de lotes e será, ao contrário das internas, pública. A doação, veja-se, ainda será obrigatória.
O Município pode, ainda, definir em sua legislação urbanística a obrigatoriedade de outras contrapartidas para a aprovação do condomínio de lotes, como, exemplificativamente, a compensação ambiental.
A alteração trazida pela Lei 14.382/2022
Dentre outras tantas mudanças, a Lei 14.382/2022, que resultou da conversão da Medida Provisória nº 1.085/2021, alterou o parágrafo segundo do artigo 1.358-A do Código Civil para acabar, de vez, com qualquer dúvida acerca do regime jurídico aplicável ao condomínio de lotes.
Com a criação do inciso II, consignou-se expressamente que se aplica ao condomínio de lotes o regime jurídico da incorporação imobiliária, como a maioria da doutrina já defendia desde o advento da Lei 13.465/2017, que primeiro regulou, a nível federal, o instituto.
Não podemos deixar de registrar que a redação da última alteração legislativa não é precisa, primeiro porque manteve a indesejável expressão “no que couber” no parágrafo segundo, abrindo margem para interpretações divergentes, e segundo porque “equiparou” o empreendedor do condomínio de lotes ao incorporador quando, na verdade, não se trata de equiparação, mas de identidade, ou seja, não há diferenciação jurídica entre o empreendedor do condomínio de lotes e o empreendimento do condomínio edilício “comum”; ambos são incorporadores e terão os mesmos direitos e deveres.
Feita essa ressalva, o endereçamento do condomínio de lotes ao rito da incorporação imobiliária implica o afastamento das regras procedimentais da Lei 6.766/79, de forma a se observar, na íntegra, as previsões da Lei 4.591/64.
Na prática, o que isso significa? Dentre outros, que:
- A documentação exigida para registro do empreendimento em cartório será aquela prevista no artigo 32 da Lei 4.591/64, menos rigorosa do que a exigida para o registro de loteamentos e desmembramentos;
- O empreendedor poderá estabelecer prazo de carência para a incorporação;
- Não haverá, em regra, caducidade do projeto aprovado em caso de não registro tempestivo em cartório;
- O empreendedor poderá constituir patrimônio de afetação, fazendo jus ao regime especial tributário (RET); e
- O contrato de compra e venda das unidades autônomas poderá seguir, para a hipótese de resolução por culpa do adquirente, as regras mais benéficas da chamada Lei do Distrato, quando comparadas com aquelas criadas para o regime do parcelamento do solo.
A escolha do legislador, como já alertáramos no primeiro artigo sobre o tema, foi bastante acertada, pois não há como se equiparar o condomínio de lotes ao loteamento ou ao desmembramento.
São figuras muito diferentes em todos os seus aspectos.
Como espécie de condomínio edilício e com todo o seu perímetro sendo particular, sem áreas públicas, o condomínio de lotes é muito mais próximo de um edifício ou conjunto de casas do que de um loteamento.
Como tal, deve, de fato, seguir o regime jurídico indicado pela Lei 14.382/2022.
Conclusão
Como vimos neste artigo, a alteração trazida pela Lei 14.382/2022 manteve a ênfase no respeito à legislação urbanística e afastou qualquer dúvida ainda existente no meio jurídico imobiliário sobre o regime jurídico aplicável ao condomínio de lotes.
O mercado imobiliário ainda escreverá os próximos capítulos da história do condomínio de lotes, mas não há dúvidas de que ele é, hoje, um dos melhores instrumentos para a implantação de projetos imobiliários, aliando um alto aproveitamento da gleba a muitos benefícios do condomínio edilício.
O desafio, agora, é difundir o instituto em larga escala para que os Municípios brasileiros passem a regulá-lo a nível local, garantindo segurança jurídica ao mercado.
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*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.