Em artigo publicado recentemente, contamos os detalhes de uma complexa situação de invasão de imóvel em Belo Horizonte e tratamos sobre as medidas jurídicas existentes para a proteção da propriedade privada.

No caso, a invasão foi praticada por um grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade, mas de forma ilícita. Assim, graças a uma atuação rápida e diligente, o problema foi solucionado em tempo recorde, sem grandes prejuízos para o proprietário.

Hoje, falaremos sobre um tema relacionado e bastante complexo, pois envolve não só teoria, mas também discursos apaixonados e choques de ideias e interesses: a desocupação coletiva.

Abordaremos, também, o polêmico julgamento do Supremo Tribunal Federal na ADPF 828, que suspendeu as ordens de despejo de ocupações coletivas durante a pandemia de covid-19.

Se quiser entender mais sobre o assunto, fique conosco até o final desse artigo!

 

Ações possessórias em casos de ocupações coletivas

 

Embora já tenhamos tratado das ações possessórias em outro texto, é importante retomar o conceito a fim de introduzir o tema de hoje.

As ações possessórias servem para retomar o imóvel que, de forma integral ou parcial, foi usurpado (tomado) do possuidor, ou quando a posse estiver sendo ameaçada.

Neste sentido, o artigo 1.210 do Código Civil estabelece que “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”.

Nos casos de ocupações coletivas, as ações possessórias são o meio adequado para a recuperação do imóvel, mas é preciso ficar atento à legislação vigente.

Nos litígios coletivos, como nos casos de grandes ocupações, se o esbulho ou a turbação tiver ocorrido há mais de um ano e um dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação.

Quando a liminar é concedida para reintegração e consequente desocupação, a ordem deve ser executada no prazo de um ano. Se não ocorrer nesse período, o juízo determinará nova audiência de conciliação.

O Ministério Público será intimado para comparecer à audiência, e a Defensoria Pública será intimada sempre que houver parte beneficiária de gratuidade de justiça.

Órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado, Distrito Federal e do Município onde se situe objeto do litígio poderão ser intimados para a audiência, a fim de se manifestarem seu interesse no processo e sobre a possibilidade de solução do conflito possessório.

 

Função social da propriedade

 

A ordem constitucional garante a propriedade privada. No entanto, há diversas limitações ao exercício desse direito, ditadas pelo interesse social.

A coletividade, representada por toda a sociedade, possui o dever jurídico de respeitar a propriedade e o seu exercício pelo titular da propriedade, embora existam exceções.

Por outro lado, a Constituição determina que a propriedade tem uma função social.

O proprietário, ao exercer o seu direito de propriedade, deve utilizar a coisa de acordo com a sua destinação e respeitando a sua função social. Assim como a utilização de imóveis rurais tem regras específicas, a de imóveis urbanos também tem, e essas regras podem variar de acordo com a finalidade residencial, comercial, industrial ou para algum outro fim específico (equipamentos públicos, cultura, lazer etc.).

Caso o proprietário exerça o direito de propriedade além da sua natural finalidade e em prejuízo de outras pessoas, poderá sofrer as consequências de seus atos, inclusive a perda da propriedade.

 

A função social da posse em ocupações coletivas

 

A posse é um direito autônomo em relação à propriedade, e se expressa por meio do aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela.

A posse tem função social fundamental, e se consolida mesmo sem o registro, ou seja, independentemente do título da propriedade.

Trata-se de um instituto que também serve para proteger direitos básicos, como: moradia; atividades empresariais, que geram emprego e trabalho para uma série de pessoas, além de fazer circular bens, incentivar a produção e a prestação de serviços; fins agropecuários, o que é capaz de gerar alimentos e produtos diversos para toda a sociedade e também gerar empregos; fins de cultura, esporte e lazer, o que gera valores diversos para a sociedade.

A justeza da posse só pode ser analisada no caso concreto.

Em um conflito agrário, por exemplo, em especial nas demandas coletivas, os ocupantes buscam o assentamento de famílias para a agricultura familiar, tornando a terra produtiva e dividida dentro dos marcos legais.

Em um conflito urbano, a ocupação dos imóveis é decorrente de uma falha no programa habitacional para famílias de renda baixa, principalmente em propriedades situadas nas áreas mais próximas aos grandes centros, onde há uma carência de moradias para a população vulnerável.

Em ambos os casos, o objetivo é garantir que a terra ou o imóvel atendam à sua função social.

Uma das formas de trazer maior destaque para estes conflitos foi a criação de associações e grupos que buscam imóveis urbanos abandonados, ou imóveis rurais que não estejam cumprindo sua função social.

Daí surge toda a ideia do exercício de função social da posse através de coletividades, multiplicidade de possuidores, legitimada por situações materiais de cunho social, e não meramente patrimonial.

Contudo, os possuidores coletivos não podem chegar aleatoriamente, em qualquer imóvel, para realizar uma ocupação, sob pena de infringir a lei e os direitos dos proprietários.

Deve-se observar os meios previstos na legislação, por exemplo:

 

  • tentativa de desapropriações indiretas (aquisição compulsória onerosa) em favor do grupo de possuidores com interesse em dar função social à posse, conforme artigo 1.228, §4º do Código Civil.
  • redução dos prazos da usucapião para os possuidores que derem função social à sua posse, de acordo com o artigo 1238, parágrafo único e 1.242, parágrafo único, do Código Civil.
  • eliminação da possibilidade de se negar a proteção possessória, com base na alegação do domínio, privilegiando-se a função social que se atribua à posse, com fundamento no artigo 1.210, §2º do Código Civil;
  • previsão da aquisição compulsória da propriedade por cumprimento da função social, o que está disposto no artigo 1.255, parágrafo único do Código Civil.

 

Em todos os casos, a lei confere ao julgador o poder de, na análise do caso concreto, com razoabilidade e proporcionalidade, privilegiar a atribuição da propriedade ao possuidor que esteja contribuindo melhor para a função social do imóvel.

Além disso, o Estatuto da Cidade, em seu artigo 10, assegura o direito à aquisição de imóvel por meio da usucapião coletiva.

Essa lei também criou instrumentos da política urbana que tratam de desapropriação, concessão de uso especial para fins de moradia, parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, usucapião, regularização fundiária, legitimação de posse, REURB, dentre outros.

O Estatuto da Terra, por sua vez, prevê institutos de reforma agrária e regularização fundiária, como: desapropriação por interesse social; doação; compra e venda; arrecadação de bens vagos e diversos outros.

O objetivo das desapropriações em áreas rurais é condicionar o uso da terra à sua função social, aproveitando-se o uso racional e adequado da terra, utilizando-se adequadamente os recursos naturais disponíveis e preservando o meio ambiente; observando-se as disposições que regulam as relações de trabalho; explorando-se de modo que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores etc.

A função social da posse nas ocupações coletivas existe, mas, para que seja adequada, deve seguir as regras existentes, previstas no Código Civil, no Estatuto da Cidade, no Plano Diretor dos Municípios e leis específicas.

Se não for cumprida a legislação, a ocupação será considerada irregular e os possuidores poderão ser retirados do local, pela desocupação coletiva, até mesmo com uso de força policial, em caso de resistência.

 

Desocupação coletiva

 

Quando a ocupação coletiva ocorre de forma violenta, clandestina ou irregular, tem-se, na verdade, uma “invasão coletiva”.

Em muitos casos, os proprietários estão em fase de regularização de imóveis, para fins de incorporação, por exemplo, mas pessoas em situação de rua ou organizações coletivas, atuando de forma ilícita, invadem a propriedade.

Há, então, um imenso desgaste com a desocupação coletiva, que, regra geral, deve ser proposta perante o Poder Judiciário.

As ações possessórias para desocupações coletivas seguem o rito específico da reintegração/manutenção de posse, sobre o qual já tratamos em outro artigo.

Nesses casos, porém, há um cuidado maior do Estado, por meio da participação direta do Ministério Público, da Defensoria Pública e até mesmo de órgãos públicos responsáveis por políticas públicas de urbanização e assistência social.

Além disso, a lei recomenda a utilização de mediação, um método alternativo de solução de conflitos, ou seja, diferente do Judiciário, que permite que as próprias partes busquem resolver a controvérsia por meio de um acordo.

Quando a mediação não surte efeito e as partes não conseguem uma composição, a ação judicial segue.

Contudo, se a decisão judicial demora, o proprietário acaba sofrendo os prejuízos da perda ou turbação da sua posse.

É fundamental, conforme já falamos, que o proprietário esteja atento ao período de um ano e um dia, sob pena de a reintegração de posse seguir por um rito mais lento do que o ideal.

O proprietário precisa ter em mente que, para a desocupação coletiva, assim como nos casos de reintegrações/manutenções individuais, não basta ser o dono do imóvel: é preciso comprovar que havia a posse de fato do bem, afinal, as ações possessórias se destinam à proteção da posse, e não da propriedade.

 

A arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 828 (ADPF 828 – STF)

 

Em decisão proferida em sede de ADPF, o Ministro Luís Roberto Barroso havia suspendido até o dia 31/10/2022 as ordens de remoção e despejos de ocupações coletivas habitadas desde antes da pandemia, prorrogando os efeitos da Lei 14.216/2021, que estabeleceu medidas excepcionais para tal período.

A decisão causou polêmica, pois muitos consideraram-na uma grave violação ao direito à propriedade privada.

Vamos, então, analisar o seu conteúdo.

A decisão inicial de suspender ordens de desocupação coletiva foi limitada a um período de graves repercussões sociais e humanitárias: a pandemia de Covid-19.

Em seu voto, o relator Ministro Luís Roberto Barroso tratou da grande insegurança habitacional que hoje assola o Brasil, um dos mais graves impactos da pandemia.

Nesse sentido, o Tribunal Pleno do STF impôs um regime de transição a ser adotado pelos Tribunais brasileiros quanto às desocupações coletivas.

Foram determinadas as seguintes medidas principais:

 

  • Os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais devem instalar, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que sirvam de apoio aos juízes. De início, as comissões precisam elaborar uma estratégia para retomar decisões de reintegração de posse suspensas, de maneira gradual e escalonada;
  • As comissões de conflitos fundiários devem realizar inspeções judiciais e audiências de mediação, com participação do Ministério Público e Defensoria Pública, antes de qualquer decisão para desocupação, mesmo em locais onde já houver determinação de despejo;
  • Além de decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções também devem ser avisadas previamente, e as comunidades afetadas devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardar o direito à moradia, proibindo-se, em qualquer situação, a separação de integrantes de uma mesma família.

 

Como se vê, o STF não proibiu as desocupações coletivas, mas determinou algumas regras específicas para o procedimento.

Durante a transição, as instâncias inferiores do Poder Judiciário deverão tomar providências para organizar a retomada dos imóveis ocupados ou invadidos de maneira gradual e escalonada, por meio de comissões de conflitos fundiários.

As comissões devem funcionar de modo a auxiliar os juízos, realizando inspeções, audiências de mediação antes de qualquer decisão para a desocupação coletiva, mesmo nos casos que já se tenha determinações de despejos, com a participação do Ministério Público e Defensoria Pública.

As audiências de mediação, vale dizer, já estão previstas no Código de Processo Civil, portanto, não foi uma inovação do STF.  

Por fim, as medidas administrativas que resultarem em remoções devem ser previamente comunicadas às comunidades ocupadas, com prazo razoável para a saída das famílias.

Caso haja resistência, em razão da desobediência à ordem legal, outros meios de remoção poderão ser empregados, como a utilização de força policial.

Frisamos: ocupações coletivas podem ocorrer de modo lícito e, nestes casos, não trazem tanta repercussão e conflitos quanto a direitos de terceiros, pois há previsão legal.

Mas, nos casos de ocupações coletivas irregulares – verdadeiras invasões – as ações possessórias são e continuam sendo altamente eficazes.

 

Medidas preventivas para o proprietário/possuidor

 

Se você tem ou pretende adquirir um imóvel para desenvolver um empreendimento, é ainda mais importante ter tudo documentado.

É recomendado tirar fotos do imóvel, cadastrar-se para as contas de luz, água, IPTU, enfim, quanto mais medidas forem tomadas para comprovar a posse, maiores serão as chances de êxito em eventual ação possessória.

Alguns imóveis são terrenos, lotes vagos que ainda não têm instalação de água e luz, no entanto, é fundamental que alguns cuidados sejam tomados, como, por exemplo, fazer o cercamento e manter o lote sempre limpo e capinado.

Também vale a pena manter um sistema de vigilância, físico ou eletrônico, de modo que seja possível monitorar a propriedade e eventuais movimentações estranhas no local.

As visitações e fiscalizações pessoais ou por meio de prepostos devem ser rotineiras.

Verificando-se qualquer risco iminente de invasão, a depender do caso, é importante comunicar imediatamente o fato às autoridades, por meio da lavratura de um boletim de ocorrência.

 

Conclusão

 

Falar de desocupação coletiva não é simples. E esse assunto ganhou ainda mais destaque após o julgamento da ADPF 828 pelo Supremo Tribunal Federal.

Neste artigo, falamos sobre ocupações coletivas e função social da posse e da propriedade, demonstrando que as ocupações podem ocorrer de forma pacífica e regular, em observância às determinações legais.

No entanto, ocupações ilícitas – verdadeiras invasões – devem ser coibidas, também por meio dos instrumentos previstos em lei, como as ações possessórias.

Falamos, também, sobre a polêmica decisão do STF.

O Tribunal havia vetado as desocupações coletivas em casos de ocupações iniciadas antes do início da pandemia e, posteriormente, impôs algumas regras específicas para as ações possessórias durante esse período de transição “pós-pandemia”.

As ações possessórias, contudo, continuam sendo um meio adequado, rápido e eficiente para a proteção da posse e da propriedade, mas, em determinadas situações, deverão ser observadas as regras específicas determinadas pelo STF.

Não houve, portanto, violação do direito à propriedade privada, mas sim uma relativização desse direito, por um determinado período, em prol de outros direitos fundamentais, como a moradia e a dignidade da pessoa humana.

Esperamos que as informações trazidas tenham sido de alguma valia. Se você gostou deste artigo, deixe seu comentário logo abaixo e inscreva-se para receber em primeira mão as próximas publicações do escritório.

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*Imagem de Getty Image, no Canva Pro.

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