A construção civil é uma das atividades que pode atrair a incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN ou ISS), mas nem sempre essa incidência ocorre.
Veremos, neste texto, que embora alguns Municípios insistam em exigir o ISS na incorporação imobiliária por conta e risco do incorporador, tal exigência é ilegal.
Para tratarmos do tema, que é objeto de debates no Poder Judiciário há décadas, abordaremos os principais conceitos relativos a tal tributo e examinaremos alguns importantes precedentes.
Venha conosco!
Índice
Conceito e regras gerais do ISS
O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), ou simplesmente Imposto Sobre Serviços (ISS), é, como o próprio nome indica, o tributo que incide sobre a atividade humana de prestar serviços.
E quais são os serviços abrangidos por esse imposto?
São aqueles contidos na lista anexa à Lei Complementar 116/2003, que é uma lei federal (até 31/07/2003, o ISS era regido pelo Decreto-Lei 406/1968).
Por ser um tributo de competência dos Municípios e do Distrito Federal, são esses entes que editam as respectivas legislações locais sobre o ISS, criando suas próprias listas de serviços.
Você pode estar se perguntando: se cada Município e o Distrito Federal editam leis próprias sobre o ISS, qual é o papel da Lei Complementar 116/2003?
Bom, conforme o artigo 146 da Constituição Federal, cabe a uma lei complementar, grosso modo, (i) dispor sobre conflitos de competência tributária entre os diferentes entes (União, Estados, Municípios e Distrito Federal); (ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; (iii) estabelecer normas gerais em matéria tributária; e (iv) definir alguns critérios especiais de tributação.
Assim, a regulação contida na Lei Complementar 116/2003 se presta a orientar como devem ser editadas as legislações municipais específicas sobre o ISS, até mesmo para evitar a duplicidade ou a multiplicidade de incidências do imposto sobre uma mesma atividade.
Também é a Lei Complementar 116/2003 que fixa a alíquota máxima do imposto (de 5%, sendo de 2% a alíquota mínima determinada pelo artigo 88 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e apresenta os parâmetros para a definição do local da prestação dos serviços, algo essencial para que o contribuinte saiba a qual Município o ISS deve ser recolhido (há situações em que isso não é nada óbvio).
Cabe ao legislador municipal legislar sobre o ISS, adaptando a legislação de acordo com as características de cada Município, respeitando os parâmetros impostos pela Lei Complementar 116/2003, inclusive no que se refere à lista de serviços.
O “rol” – o mesmo que lista – de serviços é taxativo, ou seja, a princípio não pode ser extrapolado. Contudo, admite-se interpretação extensiva, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal em junho de 2020 no julgamento do tema 296 da repercussão geral).
O que ocorre na prática, contudo, é que, via de regra, os Municípios, especialmente os de menor estrutura, apenas “copiam e colam” a lista de serviços da Lei Complementar 116/2003, inclusive reproduzindo itens que foram vetados na legislação federal.
De fato, é frequente encontrarmos, por exemplo, Municípios muito pequenos com legislações sobre o ISS que fazem referência a “serviços metroviários” (em locais onde nunca haverá metrô) ou a “serviços portuários” (em locais onde sequer há a possibilidade geográfica de existir um porto).
Incorporação imobiliária
Já tratamos do instituto da incorporação imobiliária em outro de nossos artigos, definindo-a como a atividade de vender antecipadamente um imóvel que ainda não existe (o popularmente conhecido “vender na planta”).
Em outras palavras, podemos associar a atividade de incorporação imobiliária ao desenvolvimento de empreendimentos constituídos por unidades autônomas que serão oferecidas no mercado antecipadamente à conclusão das obras.
Tal como estabelecida na Lei 4.591/1964, a incorporação imobiliária pode se dar de três formas: (i) por empreitada (artigos 55 a 57), (ii) por administração (artigos 58 a 62) ou (iii) por conta e risco do incorporador, por preço certo ou reajustável (artigos 41 e 43).
Incorporação imobiliária direta e indireta
As duas primeiras dessas três formas de incorporação, ou seja, a incorporação por empreitada e a incorporação por administração, são modalidades do que se convencionou chamar de incorporação imobiliária indireta.
Nelas, é simples verificar, de um lado, a existência de um tomador de serviços (o incorporador que contrata um empreiteiro/construtor para a execução das obras) e, de outro lado, a existência do prestador de serviços (a empresa contratada para a executar as obras por empreitada ou administração).
Já na incorporação imobiliária implementada por conta e risco do incorporador, modalidade que se convencionou chamar de incorporação direta, em que o incorporador adquire terreno em nome próprio e assume os custos de mão de obra necessários para a conclusão do empreendimento, é impossível enxergar as figuras de um tomador e de um prestador de serviços.
E o que isso tem a ver com o ISS? Tudo!
É possível prestar serviços a si próprio?
Do ponto de vista tributário, prestar serviços é uma atividade necessariamente bilateral, ou seja, é preciso que existam duas pessoas, um tomador e um prestador, para que seja possível falar-se em prestação de serviços.
Já abordamos por aqui, em nosso artigo sobre o ICMS, o conceito jurídico de circulação, que tem relação com a transferência de titularidade. Na hipótese da incorporação imobiliária direta não há, justamente, circulação econômica de um serviço, pois este não passa das mãos de uma determinada pessoa (o prestador) para as mãos de uma outra pessoa (o tomador) por meio de um resultado objetivo (o resultado da prestação dos serviços, que, na construção civil, é a entrega da edificação).
Podemos dizer, por fim, que só é prestação de serviços, sob a ótica do direito tributário, o esforço humano desenvolvido em benefício de uma outra pessoa.
Ora, se não é juridicamente viável que alguém preste serviços a si mesmo, não pode haver incidência do ISS na incorporação imobiliária direta.
Alguns municípios brasileiros, porém, extrapolando as diretrizes impostas pela Lei Complementar 116/2003 e desprezando o que está contido na Lei 4.591/1964, vêm exigindo, há muito tempo, o ISS nas incorporações imobiliárias diretas.
O Código Tributário Nacional, todavia, deixa claro, no artigo 110, que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado”, o que significa dizer que um determinado Município não pode distorcer o que vem a ser a incorporação imobiliária direta para, com isso, obter novas fontes de arrecadação.
Dizendo de outro modo, a ginástica argumentativa de alguns entes municipais, os quais afirmam que o adquirente do imóvel na planta seria o tomador dos serviços, leva, a partir do desvirtuamento do instituto da incorporação imobiliária direta, ao desvirtuamento daquilo que realmente pode ser qualificado como prestação de serviços para a incidência do ISS.
Diante disso, as incorporadoras prejudicadas precisam recorrer ao Poder Judiciário para se verem livres de autuações indevidas.
O caminho desses contribuintes no Judiciário, entretanto, nem sempre é tranquilo.
Panorama jurisprudencial sobre o ISS na incorporação imobiliária direta
Tendo em vista que a controvérsia aqui exposta envolve um conflito entre leis municipais e leis federais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por atribuição constitucional, vem se pronunciando a respeito.
A decisão mais remota que costuma ser citada é a seguinte:
TRIBUTARIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇO. I – COMPROVADO QUE A PARTE PROMOVIA AS CONSTRUÇÕES EM TERRENOS DE SUA PROPRIEDADE PELO SISTEMA DE INCORPORAÇÃO, NA QUALIDADE DE PROPRIETARIA-INCORPORADORA, NÃO HA FALAR-SE EM PRESTAÇÃO DE SERVIÇO POIS IMPOSSIVEL O CONTRIBUINTE PRESTAR A SI PROPRIO O SERVIÇO DESVANECENDO, DESTARTE, O FATO IMPONIVEL DO ISS. II – PRECEDENTES. III- RECURSO DESPROVIDO. (STJ, REsp nº. 1625/RJ, 1ª Turma, Relator Ministro Geraldo Sobral, D.J. 25/03/1991)
Desde 1991, portanto, já havia manifestação do STJ sobre o assunto, o que não impediu inúmeras administrações municipais de orientarem a sua fiscalização no sentido de tentarem cobrar o ISS em incorporações imobiliárias diretas.
Aliás, isso parece ter acontecido bastante no estado do Rio de Janeiro, pois há outras tantas decisões semelhantes do STJ ao longo da década de 1990 em recursos especiais de processos provenientes de municípios fluminenses:
ISS – CONSTRUÇOES DE EDIFICIOS. NÃO FICA SUJEITO AO ISS A PARTE QUE PROMOVE CONSTRUÇOES EM TERRENOS DE SUA PROPRIEDADE POR SUA CONTA E RISCO, VISTO SER IMPOSSIVEL FALAR-SE EM PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. RECURSO PROVIDO. (REsp nº 13385/RJ, 1ª Turma, Relator Ministro Garcia Vieira, D.J. 17/02/1992)
TRIBUTARIO. ISS. CONSTRUÇÃO CIVIL. NÃO INCIDENCIA. – NÃO ESTA SUJEITA A INCIDENCIA DO ISS A EMPRESA QUE, EM TERRENO SEU CONSTROI IMOVEIS, POR CONTA PROPRIA, PARA REVENDA. – RECURSO NÃO CONHECIDO. (REsp nº 10054/RJ, 2ª Turma, Relator Ministro Américo Luz, D.J. 16/05/1994)
TRIBUTARIO. ISS. CONSTRUÇÃO CIVIL. I – A EMPRESA QUE, EM TERRENO SEU, CONSTROI IMOVEIS, POR CONTA PROPRIA, PARA REVENDA, NÃO ESTA SUJEITA AO PAGAMENTO DO ISS. APLICAÇÃO DAS SUM. 282/STF E SUM. 356/STF E DO ART. 255 E PARAGRAFOS DO RISTJ. II – RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (REsp nº 39735/RJ, 2ª Turma, Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, D.J. 21/10/1996)
Curiosamente, pouco mais de um ano após o primeiro precedente em favor dos contribuintes, o STJ proferiu decisão em sentido totalmente inverso. Embora seja um julgamento lastreado em legislação anterior à Constituição Federal de 1988, os fundamentos invocados pelos julgadores continuaram permeando as discussões mesmo ao longo da década de 2000:
(…) Na incorporação, fundem-se dois contratos: compra e venda e empreitada. Assim, o construtor-incorporador é, também, empreiteiro. Sua atividade constitui ‘execução por administração, empreitada ou subempreitada, de construção civil’ correspondendo ao tipo fiscal descrito no item 32 da Tabela anexa ao DL 406/68. Imposto sobre serviço devido. Segurança denegada. (REsp nº 15301/RJ, 1ª Turma, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, D.J. 24/05/1993)
Podemos mencionar, nesse mesmo sentido, as decisões proferidas nos autos dos recursos especiais nº 746861/MG (1ª Turma, 10/04/2006), nº 489383/PR (2ª Turma, 24/05/2006), nº 884778/MT (1ª Turma, 07/11/2006) e nº 998437/AM (1ª Turma, 20/08/2008), as quais “deram razão” às fazendas públicas municipais, alimentando uma grande sensação de insegurança jurídica no mercado imobiliário.
Afinal, o que as incorporadoras deveriam considerar em seus planejamentos relativamente à incidência (ou não) do ISS nas incorporações imobiliárias diretas?
Quando se examina a jurisprudência do STJ, vê-se que a dúvida persistiu de maneira intensa no mínimo até 2008, quando a balança voltou a pender em favor das incorporadoras:
TRIBUTÁRIO. ISS. HIPÓTESE DE NÃO-INCIDÊNCIA. INCORPORADOR QUE, POR CONTA PRÓPRIA, CONSTRÓI EM SEU PRÓPRIO TERRENO.
1. Não há prestação de serviços a terceiros quando o incorporador, por conta própria, constrói em terrenos de sua propriedade.
2. Inexistência de contrato de empreitada com terceiros.
3. A venda de imóvel pelo incorporador não é, por si só, fato gerador de ISS.
4. Recurso especial improvido. (REsp nº 1012552/RS, 1ª Turma, Relator Ministro José Delgado, D.J. 03/06/2008)
Finalmente, no ano de 2010, o STJ demonstrou querer firmar posição no sentido de que não deve haver a incidência do ISS na incorporação imobiliária direta, por meio de decisão amplamente noticiada pela mídia e que teve significativa acolhida no universo do direito tributário brasileiro:
TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇO. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA DIRETA. CONSTRUÇÃO FEITA PELO INCORPORADOR EM TERRENO PRÓPRIO, POR SUA CONTA E RISCO. NÃO INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO A TERCEIRO.
1. A incorporação imobiliária é um negócio jurídico que, nos termos previstos no parágrafo único do art. 28 da Lei 4.591/64, tem por finalidade promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações compostas de unidades autônomas.
2. Consoante disciplina o art. 48 da Lei 4.591/64, a incorporação poderá adotar um dos seguintes regimes de construção: (a) por empreitada, a preço fixo, ou reajustável por índices previamente determinados (Lei 4.591/64, art. 55); (b) por administração ou “a preço de custo” (Lei 4.591/64, art. 58); ou (c) diretamente, por contratação direta entre os adquirentes e o construtor (Lei 4.591/64, art. 41).
3. Nos dois primeiros regimes, a construção é contratada pelo incorporador ou pelo condomínio de adquirentes, mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços, em que aqueles figuram como tomadores, sendo o construtor um típico prestador de serviços. Nessas hipóteses, em razão de o serviço prestado estar perfeitamente caracterizado no contrato, o exercício da atividade enquadra-se no item 32 da Lista de Serviços, configurando situação passível de incidência do ISSQN.
4. Na incorporação direta, por sua vez, o incorporador constrói em terreno próprio, por sua conta e risco, realizando a venda das unidades autônomas por “preço global”, compreensivo da cota de terreno e construção. Ele assume o risco da construção, obrigando-se a entregá-la pronta e averbada no Registro de Imóveis. Já o adquirente tem em vista a aquisição da propriedade de unidade imobiliária, devidamente individualizada, e, para isso, paga o preço acordado em parcelas.
5. Como a sua finalidade é a venda de unidades imobiliárias futuras, concluídas, conforme previamente acertado no contrato de promessa de compra e venda, a construção é simples meio para atingir-se o objetivo final da incorporação direta; o incorporador não presta serviço de “construção civil” ao adquirente, mas para si próprio.
6. Logo, não cabe a incidência de ISSQN na incorporação direta, já que o alvo desse imposto é atividade humana prestada em favor de terceiros como fim ou objeto; tributa-se o serviço-fim, nunca o serviço-meio, realizado para alcançar determinada finalidade. As etapas intermediárias são realizadas em benefício do próprio prestador, para que atinja o objetivo final, não podendo, assim, serem tidas como fatos geradores da exação.
7. Recurso especial não provido. (REsp nº 1166039/RN, 2ª Turma, Relator Ministro Castro Meira, D.J. 01/06/2010)
Mais de dez anos depois, no entanto, a controvérsia continuava, até que, em setembro de 2020, fazendo referência à “jurisprudência consolidada [da] Corte Superior”, a 1ª turma do STJ decidiu, mais uma vez e por unanimidade, que não há incidência de ISS na incorporação imobiliária direta (REsp 1.722.454).
Embora tal precedente não represente uma decisão que vincula de modo geral e irrestrito os demais juízes brasileiros que cuidam de processos de mesma natureza (muitos Municípios continuam lavrando autos de infração em face de incorporadoras que adquirem terreno e nele incorporam unidades utilizando mão de obra própria), espera-se que, daqui em diante, ocorra a necessária pacificação definitiva do tema.
Conclusão
Se você chegou a este artigo por já haver se deparado com a exigência do ISS na incorporação imobiliária direta, saiba que há maneiras de se defender da indevida cobrança fiscal.
Apesar do histórico turbulento na jurisprudência do STJ, nossos Tribunais, finalmente, parecem preparados para reafirmar o entendimento de que não há prestação de serviços (e, logo, não pode haver incidência do imposto) em incorporações imobiliárias com essa característica.
Estamos diante de mais um dos vários exemplos da oscilação do Poder Judiciário em questões que são muito sensíveis para determinados setores da economia, notadamente em matéria tributária, exigindo que o empreendedor brasileiro esteja sempre cercado de boas assessorias para poder desenvolver suas atividades com a segurança desejada.
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Gostaria de agradecer pela maravilhosa explanação feita por vocês no artigo acima, o qual tomei como base para relatar um processo no Município de Nova Iguaçu – no qual estou conselheiro. Jorge Miguel de Moura Andrade – Contador – 21-97025-6933 – jorge@jorgemiguel.com.br