É muito comum que, após o falecimento de um familiar, seus herdeiros não tenham recursos financeiros para dar início ao procedimento de inventário.

Afinal, mesmo havendo herança, ela ainda não é “líquida”, ou seja, os herdeiros ainda não podem usufruir de seu valor.

Neste cenário, o caminho é judicializar o inventário e requerer autorização judicial para venda de algum bem do espólio, a fim de custear as despesas do procedimento e os impostos incidentes.

Contudo, também podem ocorrer operações irregulares, por meio de contratos particulares, vindo a prejudicar outros herdeiros e até mesmo o adquirente do bem alienado.

Em artigo anterior sobre a compra e venda de imóvel em inventário, explicamos como funciona esse tipo de contrato, mas considerando, sempre, a necessidade de um procedimento judicial.

Recentemente, a Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro publicou um provimento que, em tese, permite a venda de bens do espólio pelo inventariante sem autorização judicial.

Essa novidade trouxe à tona discussões sobre o tema e pode estar abrindo caminho para que outros estados brasileiros também adotem as mesmas medidas.

No artigo de hoje, analisaremos os problemas decorrentes da burocracia para a compra e venda de bens em inventário e, inspirados pela inovação do TJRJ, falaremos, também, sobre a possibilidade de venda de bens do espólio pelo inventariante nomeado por escritura pública, sem autorização judicial.

O procedimento de inventário

Quando uma pessoa falece e deixa herança (bens móveis ou imóveis, direitos ou obrigações), é necessário realizar o procedimento denominado inventário, a fim de apurar o patrimônio e partilhá-lo entre os herdeiros.

O inventário é um procedimento obrigatório. Sem ele, não é possível transferir os bens deixados pelo falecido aos herdeiros, muito menos vendê-los a outras pessoas.

O procedimento pode ser feito de forma judicial ou extrajudicial (em cartório). Em ambos os casos, é necessário que todos os herdeiros estejam representados por advogado(a).

No procedimento judicial, além dos honorários advocatícios, os herdeiros devem arcar com as custas processuais e com o Imposto de Transmissão Causa Mortis (ITCD ou ITCMD). Já no extrajudicial, as despesas são as mesmas, mas, ao invés de custas processuais, são devidos emolumentos ao cartório.

As custas processuais e os emolumentos são calculados com base no valor dos bens e, assim como o ITCD, têm valores diferentes em cada estado da federação.

É fácil perceber, então, que o inventário não é um procedimento barato.

Mesmo que os herdeiros não tenham condições financeiras para custear o processo e, por isso, recebam o benefício da justiça gratuita, não há como escapar do ITCD, cuja alíquota varia de 2% a 8% do valor do patrimônio.

O que acontece quando os herdeiros não conseguem arcar com todas as despesas do inventário?

Existem vários desdobramentos possíveis quando os herdeiros não têm condições financeiras para custear as despesas do inventário.

Nos concentraremos, aqui, nas hipóteses em que os herdeiros não são pessoas hipossuficientes financeiramente, mas, diante do alto valor dos bens herdados, não têm liquidez imediata para bancar todos os impostos, custas, emolumentos e honorários de advogado.

De acordo com a lei, a solução para essa situação é fazer o inventário na modalidade judicial, requerendo que as custas processuais sejam pagas ao final do procedimento e pleiteando autorização do juízo para alienação de algum bem, a fim de que, com o valor obtido pela venda, seja possível pagar os custos do procedimento.

Com efeito, a compra e venda de imóvel em inventário depende, em regra, da expedição de um alvará judicial para venda de imóvel em inventário, que é o documento expedido e assinado pelo juiz contendo a autorização para a alienação daquele bem.

Ainda assim, contudo, será necessário pagar, pelo menos, o ITCD, que incidirá sobre toda a herança, e não apenas sobre o bem objeto da venda.

Neste contexto, para viabilizar e “facilitar” o negócio e o procedimento, as partes envolvidas podem acabar celebrando contratos irregulares, como a venda de um imóvel pertencente ao espólio sem autorização judicial, assumindo o risco, por exemplo, de ter o negócio impugnado por outros herdeiros.

Também não haverá segurança jurídica para o adquirente, já que a transferência da propriedade só ocorre após a lavratura da escritura pública de compra e venda e registro junto ao Cartório de Imóveis, que dependerá da autorização judicial.

Além disso, se houver consenso entre os herdeiros acerca da partilha, o procedimento sequer precisará ser feito judicialmente, a não ser que existam herdeiros incapazes.

Ou seja, o Judiciário – que, como se sabe, é abarrotado de processos – acaba sendo acionado apenas para validar uma decisão tomada em conjunto por todos os interessados, sem qualquer litígio.

A função do inventariante

A administração dos bens do espólio – incluindo a venda de determinado bem, por exemplo – não é realizada por todos os herdeiros, em conjunto.

Tal função é exercida apenas pelo inventariante.

O artigo 617 do Código de Processo Civil determina quem pode ser inventariante, estabelecendo, ainda, uma ordem de prioridade:

Art. 617. O juiz nomeará inventariante na seguinte ordem:

I – o cônjuge ou companheiro sobrevivente, desde que estivesse convivendo com o outro ao tempo da morte deste;

II – o herdeiro que se achar na posse e na administração do espólio, se não houver cônjuge ou companheiro sobrevivente ou se estes não puderem ser nomeados;

III – qualquer herdeiro, quando nenhum deles estiver na posse e na administração do espólio;

IV – o herdeiro menor, por seu representante legal;

V – o testamenteiro, se lhe tiver sido confiada a administração do espólio ou se toda a herança estiver distribuída em legados;

VI – o cessionário do herdeiro ou do legatário;

VII – o inventariante judicial, se houver;

VIII – pessoa estranha idônea, quando não houver inventariante judicial.

O inventariante pode ser indicado pelos herdeiros e nomeado pelo juiz do processo de inventário, quando judicial, ou por meio de “escritura pública de escolha de inventariante”, quando extrajudicial.

Entre as funções do inventariante, vale destacar, no contexto deste artigo, (i) a representação do espólio, ativa e passivamente, em juízo ou fora dele, (ii) a administração do espólio, (iii) a alienação de bens do espólio e (iv) o pagamento de dívidas do espólio (artigos 618 e 619).

Portanto, todos os atos relativos à administração dos bens do espólio – incluindo a venda de um imóvel, por exemplo, para custear as despesas do inventário – deverão ser realizados pelo inventariante.

Inventariante extrajudicial

Como vimos anteriormente, o inventariante também pode ser nomeado pelos herdeiros por meio de escritura pública lavrada perante qualquer Tabelionato de Notas.

A nomeação servirá, por exemplo, para comprovar a legitimidade do inventariante na representação processual do espólio e praticar os demais atos de administração dos bens.

Contudo, em relação à alienação de bens e ao pagamento de dívidas do espólio, a lei determina que tais atos só podem ser praticados com autorização do juiz (artigo 619 do Código de Processo Civil).

Isso significa que, ainda que haja consenso entre os herdeiros sobre a alienação de um bem, e que o inventariante já tenha sido formalmente nomeado, será, em tese, necessário iniciar um processo judicial para obter a autorização.

Provimento 77/2022 da CGJ/TJRJ

Em outubro de 2022, a Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro publicou o Provimento nº 77, que dispõe sobre “a alienação, por escritura pública, de bens integrantes de acervo hereditário”.

Com a nova norma, que tem eficácia local, a venda de bens do espólio pelo inventariante sem autorização judicial passou a ser uma possibilidade no Estado do Rio de Janeiro.

Obviamente, e com razão, o provimento impôs uma série de exigências para a operação:

  • Pagamento à vista de parte do preço do bem objeto da alienação (sinal);
  • Utilização do valor recebido como sinal para quitação do ITCD incidente sobre a integralidade da herança;
  • Utilização do valor recebido como sinal para pagamento prévio dos emolumentos relativos à lavratura da escritura pública de inventário;
  • Prévia nomeação do(a) inventariante em escritura pública ou no instrumento de alienação do bem.

Em outras palavras, é condição para o negócio que a quitação do ITCD e dos emolumentos devidos ao cartório seja garantida pelo pagamento de parte do preço da venda do bem.

Além dessas exigências, o provimento também prevê que, se o inventário não puder ser processado extrajudicialmente (por haver conflito entre os herdeiros, se o falecido tiver deixado testamento ou se houver herdeiro incapaz, por exemplo), a alienação dos bens dependerá, obrigatoriamente, de autorização judicial.

Não poderá, ainda, constar a indisponibilidade de bens em relação a algum dos herdeiros ou meeiro.

O Provimento, emanado da CGJ/TJRJ, tem eficácia limitada ao Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, as inovações trazidas pela norma podem estar abrindo portas para que outros estados também facilitem a alienação de bens do espólio por inventariante extrajudicial.

Por outro lado, também é preciso considerar que se trata de uma norma hierarquicamente inferior ao Código de Processo Civil, uma lei federal que, como vimos, prevê que a alienação de bens do espólio depende de autorização judicial.

A possibilidade de venda de bens do espólio pelo inventariante sem autorização judicial

Atualmente, a lei processual brasileira condiciona a alienação de bens do espólio à obtenção de autorização judicial (artigo 619 do Código de Processo Civil).

Entretanto, em razão dessa exigência, muitos inventários que poderiam ser realizados extrajudicialmente acabam sendo judicializados em razão da necessidade de autorização para venda, abarrotando ainda mais o já assoberbado Poder Judiciário.

Em alguns casos, a necessidade de aguardar a expedição do alvará judicial pode até mesmo inviabilizar o negócio, já que é impossível prever o ritmo dos andamentos processuais.

Além disso, a via judicial geralmente é mais lenta e, consequentemente, mais onerosa, o que prejudica os herdeiros, interessados na venda, e até mesmo o comprador, que precisa esperar por tempo indefinido a autorização do juízo.

É por isso que, a nosso ver, a novidade trazida pelo Provimento 77/2022 da CGJ/TJRJ é uma boa solução.

A tese também é defendida, em brilhante análise, pelo advogado e professor Marcos Kikunaga.

De fato, uma vez que todos os herdeiros, civilmente capazes, compareceram a um tabelionato de notas para nomear um inventariante, com assistência de advogado, parece-nos óbvio que haverá, ali, uma relação de confiança e – por que não? – de mandato, outorga de poderes dos herdeiros para o inventariante, para que este possa, então administrar da melhor forma a herança.

A venda de um dos bens para levantar recursos para custear o inventário deverá, naturalmente, se dar no interesse dos herdeiros, e nos limites da incumbência do inventariante, haja vista que o espólio é uma situação de fato que, por sua própria natureza, deve ser transitória.

No que se refere à inovação do TJRJ, as exigências impostas para a alienação de bens sem autorização judicial parecem dar segurança suficiente aos herdeiros e à Fazenda Pública, sem obrigar os envolvidos a lidarem com a morosidade do Judiciário.

Como o Provimento tem eficácia local, não há como garantir que os cartórios de outros estados brasileiros terão o mesmo posicionamento.

Entretanto, defendemos que, observadas as exigências do Provimento, e especificando-se, na nomeação extrajudicial do inventariante, a concordância de todos os herdeiros com a alienação de determinado bem e as condições do negócio, os cartórios podem e devem lavrar a escritura pública competente.

Como medida adicional de segurança, o inventariante poderia, também, depositar eventual valor remanescente, após a quitação do ITCD e dos emolumentos, em conta bancária aberta em nome do espólio, especificamente para este fim.

Conclusão

A compra e venda de bens em inventário, embora muito comum, é um negócio que, por depender de processo judicial, pode ser demorado, caro e desgastante.

Além dos prejuízos aos interessados no negócio, a necessidade de autorização judicial, mesmo nos casos em todos os herdeiros estão de acordo e não há qualquer impedimento à venda, acaba contribuindo para a sobrecarga do Judiciário, que já está, há muito tempo, lotado de processos.

O Provimento 77/2022 da Corregedoria Geral de Justiça do TJRJ trouxe uma nova possibilidade para o Estado do Rio de Janeiro, permitindo a venda de bens do espólio pelo inventariante sem autorização judicial, desde que observadas as exigências criadas pela norma.

Entretanto, por ser uma norma de eficácia local, e, além disso, hierarquicamente inferior às leis, não há como exigir a sua aplicação por cartórios de outros estados da federação.

Ainda assim, o Provimento representa mais um avanço na desjudicialização e desburocratização de procedimentos sem caráter contencioso.

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*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.

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