À primeira vista, a discussão acerca da possibilidade de registro de instrumento particular para constituição de alienação fiduciária pode parecer puramente teórica e extremamente técnica.

Porém, os resultados dessa discussão trazem efeitos práticos muito relevantes para os agentes do mercado imobiliário: construtores, incorporadores e, principalmente, adquirentes.

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por fiscalizar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, julgou o processo administrativo de n° 0000145-56.2018.2.00.0000, onde se discutia a possibilidade de registro de alienação fiduciária por meio de instrumento particular celebrados fora do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). 

A decisão tomada pelo CNJ, diga-se de passagem, controversa, tem sido muito discutida pelos operadores do Direito, em especial por aqueles que atuam no segmento do Direito Imobiliário.

Vejamos, portanto, as implicações desse novo posicionamento adotado pelo CNJ, sua repercussão e demais considerações diante do sistema normativo já posto.

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Possibilidade de registro de instrumento particular para constituição de alienação fiduciária.

Lei de Alienação Fiduciária 

Dada a relevância da Lei de Alienação Fiduciária para o sistema imobiliário brasileiro, já dedicamos diversos artigos a esse tema, que você pode acessar clicando nos links a seguir:

No artigo de hoje, portanto, pontuaremos brevemente alguns conceitos relevantes para compreender a discussão que tramitou no CNJ.

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A alienação fiduciária é uma modalidade de garantia pactuada em contratos, muitas vezes, chamada de pacto adjeto ao contrato principal. Ou seja, a sua existência está condicionada a um negócio anterior e principal.

Para contrair crédito junto a alguma Instituição Financeira, o contratante dá algum bem (móvel ou imóvel) em alienação fiduciária, ou seja, em garantia de pagamento do financiamento.

Com essa “entrega” do bem, entre aspas porque a entrega não acontece de fato, mas apenas “no papel”, o contratante/fiduciante transfere a propriedade resolúvel do imóvel ao credor/fiduciário, que se tornará o proprietário fiduciário da coisa.

Assim, nesse exemplo, a instituição financeira será a proprietária fiduciária enquanto perdurar a dívida do financiamento. Após a sua quitação, a propriedade retorna ao fiduciante. Porém, em caso de inadimplemento, a propriedade fiduciária é consolidada em benefício do fiduciário e credor.

Portanto, a alienação fiduciária possui natureza jurídica de garantia real, vez que, caso seja executada por inadimplemento, recairá sobre o bem em específico, móvel ou imóvel.

Quem pode constituir alienação fiduciária? 

Essa questão está respondida no §1° do artigo 22 da Lei de Alienação Fiduciária (Lei n° 9.504/1997):

Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

  • A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI (…).

Em outras palavras, qualquer pessoa poderá firmar contrato com garantia de alienação fiduciária: pessoa natural, construtoras, incorporadoras, independentemente de pertencerem ao Sistema Financeiro Imobiliário.

Portanto, a alienação fiduciária não é uma garantia exclusiva das instituições financeiras.

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Possibilidade de registro de instrumento particular para constituição de alienação fiduciária.

Como se constitui a alienação fiduciária? 

Também está prevista na Lei de Alienação fiduciária a forma de contratação da garantia:

Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.

Assim, a constituição da alienação fiduciária pode se dar tanto por escritura pública quanto por instrumento particular com efeitos de escritura pública.

Provimento n° 93/2020 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais 

O Provimento Conjunto n° 93/2020 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais instituiu o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, regulamentando os procedimentos notariais e de registro do Estado.

Referida norma prevê a forma e o procedimento de constituição de alienação fiduciária nos Cartórios de Registro de Imóveis de Minas Gerais, restringindo, contudo, o uso do instrumento particular para registro da garantia.

Com efeito, o art. 954 do Provimento n° 93 só permite o registro da alienação fiduciária por meio de instrumento particular para as Instituições integrantes do SFI. Vejamos:

Art. 954. Os atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos poderão ser celebrados por escritura pública ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis.

Esse entendimento minoritário, adotado somente pelos Estados de Minas, Paraíba, Pará e Bahia, contraria disposições da própria Lei Especial, o que pode trazer efeitos catastróficos para o mercado imobiliário.

Decisão do Conselho Nacional de Justiça

Existe, no mercado imobiliário, uma controvérsia sobre quem poderá constituir a alienação fiduciária por intermédio de instrumento particular com efeitos de escritura pública: qualquer interessado ou somente os integrantes do SFI (ou seja, instituições financeiras)?

Foi essa a questão “solucionada” pelo CNJ.

O Conselho Nacional de Justiça, enquanto órgão competente para fiscalizar os atos administrativos e financeiros do Poder Judiciário, possui competência para rever, inclusive, o Código de Normas de cada um dos Estados, dada sua natureza administrativa.

Nesse contexto, foi proposto Procedimento de Controle Administrativo (0000145-56.2018.2.00.0000) em face do Provimento nº 93 do TJMG, referente à restrição da utilização de instrumento particular com efeito de escritura pública para formalização dos atos inerentes à alienação fiduciária apenas às entidades integrantes do SFI.

Em sua defesa, o TJMG arguiu o disposto no art. 108 do Código Civil, que deveria ser interpretado juntamente com os demais dispositivos da Lei de Alienação Fiduciária. Por força do referido artigo, os negócios que envolvam imóveis de valor superior a 30 (trinta) salários-mínimos devem, obrigatoriamente, ser firmados por meio de escritura pública.

Submetido o processo a julgamento, o CNJ julgou improcedente o pedido do requerente, sob o fundamento de que o entendimento adotado pelo TJMG é razoável e encontra respaldo na legislação de regência, e que a atuação do Conselho se limita a analisar se o ato é ou não legal.

Sendo assim, ficou decidido pelo CNJ que somente as entidades integrantes do SFI podem constituir alienação fiduciária por meio de instrumento particular.

Vejamos a ementa do julgado:

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. LEI 9.514/1997. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL. FORMA DE CELEBRAÇÃO. ESCRITURA PÚBLICA OU INSTRUMENTO PARTICULAR. PODER REGULAMENTAR. LIMITES. PROVIMENTOS 260/2013, 299/2015, 345/2017 E 93/2020. FLAGRANTE ILEGAIDADE. INOCORRÊNCIA. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE.

  1. Procedimento de Controle Administrativo proposto contra ato de Tribunal que restringiu às entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário, às Cooperativas de Crédito e às Administradoras de Consórcio de Imóveis a celebração de contratos de alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos por meio de instrumento particular.
  2. O entendimento sufragado pelo Tribunal mineiro é razoável e encontra ressonância na legislação de regência, de modo que refoge ao Conselho Nacional de Justiça intervir no ou mesmo expedir ato normativo para os órgãos do Poder Judiciário com vistas a disciplinar a matéria.
  3. In casu, a intromissão do CNJ pode afetar incontáveis contratos de alienação fiduciária celebrados no âmbito do Estado de Minas Gerais, cuja (in)validade será discutida justamente na esfera jurisdicional.
  4. Improcedência do pedido.(CNJ – PCA – Procedimento de Controle Administrativo – 0000145-56.2018.2.00.0000 – Rel. MÁRIO GOULART MAIA – 11ª Sessão Ordinária de 2023 – julgado em 08/08/2023 ).

Você pode consultar a íntegra da decisão e demais informações do processo clicando aqui.

Conforme dito no início deste texto, a decisão do CNJ não foi bem quista pela maioria, levantando uma série de polêmicas a respeito do texto normativo e do próprio sistema imobiliário.

Trataremos, agora, das principais controvérsias a respeito do tema.

Conflito de normas

A grande polêmica envolvendo a recente decisão do CNJ, que restringiu a utilização de instrumento particular para constituição de alienação fiduciária às entidades do SFI, reside nas próprias disposições da Lei de Alienação Fiduciária.

Como vimos, o art. 22, § 1° da Lei nº 9.514/97 prevê que a alienação fiduciária poderá ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, integrante ou não do Sistema Financeiro Imobiliário.

Além disso, o art. 5°, § 2° da Lei de Alienação Fiduciária prevê que “as operações de comercialização de imóveis, com pagamento parcelado, de arrendamento mercantil de imóveis e de financiamento imobiliário em geral poderão ser pactuadas nas mesmas condições permitidas para as entidades autorizadas a operar no SFI”.

Destaca-se, também, o art. 38 da mesma lei, que dispõe:

Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.

Portanto, de acordo com a legislação sobre o tema, a alienação fiduciária pode ser pactuada tanto por escritura pública quanto por instrumento particular com efeitos de escritura pública, por qualquer pessoa, inclusive aquelas não integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário.

Feitas tais considerações, existem alguns aspectos a esse respeito que precisam ser ponderados:

Primeiro ponto: se a lei afirma que as condições para constituição de alienação fiduciária poderão ser as mesmas, independente do ente fiduciário ser ou não integrante do SFI, sob qual fundamento o TJMG e, posteriormente, o CNJ, poderiam impor o contrário?

Segundo ponto: o art. 38 autoriza que seja utilizado instrumento particular com efeitos de escritura pública. Mas a lei não define quais os elementos darão a um contrato particular força de escritura pública, sendo certo que não há, no referido dispositivo, qualquer previsão neste sentido.

Há, portanto, um conceito que carece de maior explicação do legislativo, órgão competente para a criação das normas e para alterá-las.

Para esclarecer a controvérsia por meio da lei, é necessário que se defina o que dá a um documento particular efeitos de escritura pública, ou, então, extirpar a expressão “com efeitos de escritura pública” do artigo 38.

Em contrapartida, na Lei do Sistema Financeiro Habitacional (Lei n° 4.380/1964), há previsão expressa de que os contratos firmados por entidades que integram o SFH terão caráter de escritura pública:

Art. 61. Para plena consecução do disposto no artigo anterior, as escrituras deverão consignar exclusivamente as cláusulas, termos ou condições variáveis ou específicas.

(…)

  • 5º Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei. 

Da mesma forma, o já citado artigo 5°, § 2° da Lei de Alienação Fiduciária assegura a todos os contratantes iguais condições para constituição de alienação fiduciária, sendo ou não entes do SFI. 

Ressalta-se, ainda, que se fosse a intenção do legislador restringir o uso de instrumento particular às instituições pertencentes ao SFI, isso deveria constar expressamente no texto da lei.

Portanto, se o Provimento Estadual ou o CNJ criam uma limitação e restrição de direitos, estão indo de encontro ao que dispõe a lei especial que rege o assunto.

Terceiro ponto: A alienação fiduciária não é um direito real por si só. Trata-se de uma garantia real que confere ao fiduciante um direito real de aquisição, nos termos do art. 1.368-B do Código Civil.

Veja que a alienação fiduciária não está no rol dos direitos reais, previsto no art. 1.225 do Código Civil.

Sendo assim, o art. 108 do Código Civil, que obriga a utilização de escritura pública pra negócios que envolvam direitos reais sobre imóveis, não deveria se aplicar à alienação fiduciária, que não possui natureza jurídica de direito real, e sim de garantia real.

Veja-se, a figura da garantia real (alienação fiduciária) é diferente do direito real relacionado (propriedade).

Quarto ponto: Pelo princípio da especialidade, a lei especial derroga a lei geral. Essa é uma máxima admitida em Direito.

Sendo assim, em se tratando de alienação fiduciária, deverão ser aplicadas as previsões da lei específica (Lei n° 9.514/1997), em detrimento da norma geral (Código Civil).

Portanto, de forma alguma o disposto no art. 108 do Código Civil poderia se sobrepor à Lei de Alienação Fiduciária. Trata-se de uma inobservância a todo o ordenamento: dos princípios basilares de direito e da própria lei especial.

Quinto ponto: Pelo princípio da igualdade, o benefício econômico concedido às entidades do SFI em detrimento dos demais não se justifica.

Ainda que haja um caráter social que sobrepese ao SFI e ao SFH, o direito à moradia é um direito fundamental de todo e qualquer brasileiro. Assim como o direito à iniciativa privada.

Sendo assim, o benefício dado a tais instituições, que, via de regra, possuem um altíssimo capital, coloca os pequenos e médios empresários em uma situação de desvantagem excessiva, ao exigir destes a celebração de escritura pública, enquanto para aqueles, bastará um contrato particular.

Admitir a interpretação do CNJ fere o princípio da isonomia, da legalidade e da razoabilidade, pois prejudica as empresas do ramo imobiliário e, principalmente, os adquirentes.

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Possibilidade de registro de instrumento particular para constituição de alienação fiduciária.

Sexto ponto: A competência para legislar sobre registros públicos pertence privativamente à União, conforme o art. 22, XXV da Constituição.

Assim, as leis e atos estaduais ou municipais não poderão ofender a norma federal no que diz respeito ao tema.

Portanto, se a norma federal, no caso, a Lei da Alienação Fiduciária, permite que instrumento particular com força de escritura pública seja utilizado para constituir e registrar alienação fiduciária, não pode uma norma estadual limitar esse direito.

Desse modo, a decisão do CNJ fere, igualmente, a competência legislativa privativa da União para legislar sobre registros públicos.

Sétimo ponto: Com essa limitação criada pelo CNJ, modifica-se um entendimento e prática adotada majoritariamente em todo o país, que causará impactos nos negócios vigentes e futuros.

O aumento dos custos para celebração de contratos com alienação fiduciária, dada a obrigação de realização mediante escritura pública, traz reflexos diretos ao consumidor final, que poderá limitar ou até mesmo impedir a aquisição de um bem.

A nosso ver, a questão econômica não foi ponderada pelo CNJ ao proferir a decisão que aqui se discute, sendo esse um critério fundamental para a alteração de qualquer lei, ainda mais quando se trata de um instituto de tamanha relevância para o Direito e para a Economia.

Por meio da alienação fiduciária, milhões de brasileiros puderam realizar o sonho da casa própria; milhares de empresas do ramo imobiliário desenvolveram seus negócios. Sendo assim, a esse instituto não cabem restrições ou vedações infundadas, e sim maiores incentivos e fomento.

Defendemos (e esperamos), que essa decisão seja revista o quanto antes, de modo a garantir que o interesse social prevaleça sobre os interesses privativos de determinados grupos.

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Possibilidade de registro de instrumento particular para constituição de alienação fiduciária.

Conclusão

Apesar da relevância do Conselho Nacional de Justiça, acreditamos que essa não tenha sido a sua decisão mais acertada, pelos diversos motivos aqui expostos.

Caso seja mantida, a obrigatoriedade de escrituras públicas para constituição de alienação fiduciária não só tornará o processo mais caro, como também mais moroso.

Espera-se que o Poder Legislativo, ou até mesmo o STJ, como intérprete das leis infraconstitucionais, se posicionem logo a respeito.

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