Com a publicação da Lei do Distrato (Lei n° 13.786, de 27 de dezembro de 2018) e a criação de novas regras sobre a rescisão de contratos de compra e venda de imóveis na planta ou de lotes em loteamento, a jurisprudência, inevitavelmente, também foi renovada.
Antes da edição da Lei, permaneciam dúvidas sobre quais critérios deveriam ser observados para o distrato ou resolução de contratos particulares de compra e venda de imóvel, imputando ao Judiciário, muitas vezes, o arbitramento ou balizamento de tais regras.
Já com a Lei do Distrato, critérios mais objetivos para a conclusão e desfazimento desses negócios foram estabelecidos, o que, em tese, tende a minimizar os conflitos sobre esse tema.
Mas será que a Lei do Distrato, de fato, contribuiu para a diminuição desses conflitos? Ou, ainda, será que a Lei tem sido observada pelas Partes no momento da contratação?
Dedicaremos o nosso artigo de hoje à compreensão do entendimento dos Tribunais quanto à aplicação e interpretação da Lei do Distrato.
Índice
Conceitos iniciais
Antes de discutirmos o posicionamento dos Tribunais sobre a aplicação da Lei do Distrato, é importante trazer alguns conceitos iniciais para facilitar a compreensão do tema pelo público geral, não familiarizado com termos jurídicos.
O que é a Lei do Distrato?
A Lei do Distrato já foi objeto de um de nossos artigos aqui no blog.
Também já abordamos em nosso blog o conflito aparente entre a Lei do Distrato, a Lei da Alienação Fiduciária (Lei n° 9.514/1997) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/1990), no que diz respeito ao rompimento dos contratos (você pode acessar o artigo clicando aqui).
No texto de hoje, daremos um panorama sobre o que é a Lei do Distrato e o seu principal objetivo.
Essa lei foi redigida em um contexto de frequentes distratos a contratos de compra e venda, quando ainda não havia uma regra específica sobre penalidades, percentuais de retenção e de devolução a serem aplicados etc.
Consequentemente, a intervenção do Judiciário era constantemente demandada.
A Lei do Distrato veio para fixar as penalidades devidas em caso de rescisão do contrato de promessa de compra e venda firmados com incorporadoras ou loteadoras, aplicáveis para a venda de imóveis na planta ou lotes em loteamentos.
Assim, a ideia de obrigatoriedade dos Contratos (pacta sunt servanta) e a irretratabilidade da promessa de compra e venda passam a ser relativizadas.
Isso porque, com a Lei do Distrato, a regra passa a ser de que os contratos podem, sim, ser encerrados por ato unilateral do adquirente, que será ressarcido pelo que já foi pago, observadas as retenções legais que poderão ser feitas pela parte vendedora.
Esses percentuais se aplicam tanto para a resolução por inadimplemento do adquirente quanto por desistência unilateral. Vejamos quais são eles no quadro a seguir:
VALORES QUE PODEM SER RETIDOS PELA INCORPORADORA/LOTEADORA | |
Incorporação | Loteamento |
Valor total da comissão de corretagem | Taxa de fruição do imóvel de 0,75% sobre o valor do contrato, pelo período da posse, se já tiver sido transmitida |
Multa rescisória não superior a 25% do valor pago pelo adquirente e de até 50% quando o empreendimento for submetido ao patrimônio de afetação | Multa rescisória não superior a 10% do valor atualizado do contrato |
Impostos reais (pela propriedade) já vencidos durante o uso do adquirente | Encargos moratórios |
Taxa de fruição do imóvel de 0,5% sobre o contrato, pro rata die, se a posse já tiver sido transmitida | Tributos e despesas administrativas incidentes sobre o imóvel |
Encargos sobre o imóvel e demais despesas contratuais | Comissão de corretagem, desde que o valor integre o preço do lote |
O que é jurisprudência?
Feito o panorama sobre a Lei do Distrato, vamos, agora, entender o que é jurisprudência, termo tão utilizado até mesmo por quem não trabalha no meio jurídico.
Jurisprudência é o conjunto de decisões, que refletem o entendimento de um determinado Tribunal sobre determinada matéria.
Em outras palavras, é como os tribunais aplicam a lei.
Um exemplo de jurisprudência é o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado no Tema n° 122, de que tanto o promitente comprador quanto o promitente vendedor podem ser responsáveis pelo pagamento do IPTU, cabendo à legislação municipal estabelecer de quem será a obrigação.
O entendimento foi firmado após a análise de diversos casos semelhantes, sobre o mesmo tema, e, agora, deve ser seguido pelos tribunais estaduais.
Jurisprudência anterior à Lei do Distrato
Mesmo antes da Lei do Distrato, a possibilidade do adquirente, independentemente de sua adimplência, requerer a extinção do contrato de promessa de compra e venda já era amplamente admitida pela jurisprudência.
Vejamos, a seguir, um julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que exemplifica esse entendimento:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. UNIDADE HABITACIONAL EM CONSTRUÇÃO. RESCISÃO UNILATERAL. ADQUIRENTE. ARRAS CONFIRMATÓRIAS. PERDA INTEGRAL. NÃO CABIMENTO. RETENÇÃO DE PARTE DAS PARCELAS PAGAS. POSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 83/STJ. FUNDAMENTO AUTÔNOMO E SUFICIENTE DO ACÓRDÃO RECORRIDO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO. SÚMULA Nº 283/STF. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. DISSÍDIO PRETORIANO. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE ARESTOS CONFRONTADOS.
(…)
- Consoante a jurisprudência pacífica desta Corte, o arrependimento do promitente comprador de unidade habitacional em construção não importa em perda das arras se estas forem confirmatórias, admitindo-se, contudo, a retenção, pelo vendedor, de parte das prestações pagas, como forma de indenizá-lo pelos prejuízos eventualmente suportados com o desfazimento do negócio.
(…) (AgRg no REsp n. 1.394.048/PB, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 1/12/2015, DJe de 9/12/2015.)
Portanto, antes mesmo da Lei do Distrato, já era possível que o adquirente desistisse do negócio e ainda fosse restituído parcialmente pelo valor pago ao vendedor.
A dúvida, entretanto, permanecia em relação ao quantum a ser devolvido e retido.
Os Tribunais vinham aplicando o percentual de 10% a 25% dos valores pagos, até a publicação da Lei do Distrato.
Com a Lei, esses percentuais foram definidos expressamente para os contratos pactuados entre o adquirente e o incorporador ou loteador.
Jurisprudência após a Lei do Distrato
Vejamos, agora, como os Tribunais vêm aplicando a Lei do Distrato.
Primeiramente, analisaremos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, responsável pela interpretação de normas infraconstitucionais, tais como a Lei do Distrato.
Como o percentual de retenção para os casos de incorporação sob o regime de afetação pode chegar a 50%, as decisões já têm sido conflitantes, algumas favoráveis, outras contrárias à aplicação da lei.
O entendimento contrário à aplicação da retenção de 50% é baseado no art. 413 do Código Civil, que dispõe:
“Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.”
Por ter sido considerada, por parte dos julgadores, uma penalidade elevada, o STJ tem determinado o afastamento da norma em alguns casos, diminuindo-se, assim, o valor da penalidade.
A título exemplificativo, vejamos a ementa do Recurso Especial n° 1.909.697:
RECURSO ESPECIAL Nº 1979096 – SP (2021/0405512-5)
EMENTA
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL E DEVOLUÇÃO DE QUANTIAS PAGAS. DEVOLUÇÃO AO PROMISSÁRIO COMPRADOR DOS VALORES PAGOS COM A RETENÇÃO DE 25% POR PARTE DA VENDEDORA. CONSONÂNCIA COM O ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NO STJ.
DESPESAS CONDOMINIAIS. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NESSA EXTENSÃO, IMPROVIDO.
DECISÃO
(…)
A apelação interposta por PYPS não foi provida pelo Tribunal de Justiça Paulista nos termos do acórdão, assim ementado:
APELAÇÃO. Promessa de compra e venda. Ação de rescisão contratual cumulada com restituição de valores, julgada parcialmente procedente. Recurso da ré. Rescisão por conveniência dos adquirentes. Contrato celebrado na vigência da Lei nº 13.786/2018.
Devolução das parcelas. Cabimento. Inteligência da Súmula nº 543/C.
STJ. Retenção de no máximo de 25% do montante pago. Previsão contratual e aceitação pela jurisprudência para cobriras despesas administrativas suportadas pela vendedora. Pretensão à retenção de 50% dos valores pagos ao fundamento de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A e 31-Fda Lei nº 4.591/64). Inadmissibilidade. Conquanto instituído o regime do patrimônio de afetação, a obra já foi concluída, com a instituição de condomínio e atribuição das unidades aos adquirentes, registrada a Convenção de Condomínio e abertas as matrículas das respectivas unidades autônomas. Abusividade de imposição dos efeitos do instituto aos adquirentes, sob pena de se perpetuar em seu desfavor garantia patrimonial em exclusivo interesse do incorporador.
(…)
(1) Do percentual de retenção
Nas razões do presente recurso, PYPS afirmou a violação do art. 67-A, II,da Lei nº 13.786/2018 sustentando que faz jus à retenção de 50% dos valores pagos pelos recorridos.
Sobre o tema o Tribunal de Justiça concluiu o seguinte:
Assim, com a rescisão do contrato por culpa exclusiva dos adquirentes, a retenção dos valores pagos deve observar os termos contratuais, respeitado o máximo de 25% do montante pago, de acordo com os escorreitos fundamentos da r. sentença, que ora são adotados como razões de decidir para evitar desnecessária repetição, como autoriza o art. 252 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça, in verbis: (e-STJ, fl. 305) No mesmo sentido, esta Corte Superior possui jurisprudência consolidada de que, tanto nos contratos anteriores quanto nos posteriores à Lei 13.786/2018, deve prevalecer o percentual de 25% (vinte e cinco por cento) de retenção na rescisão de contrato de compra e venda de imóvel, por desistência do comprador, por ser montante adequado e suficiente para indenizar o construtor das despesas gerais e do rompimento unilateral do contrato.
(…)
Nesse contexto, a retenção deve obedecer ao máximo de 25% do montante pago, o que responde de maneira equilibrada pela indenização da PYPS, estando, ademais, em consonância com jurisprudência existente sobre a matéria e com a Lei nº 13.786/2018.
Assim, porque os fundamentos adotados pelo acórdão recorrido estão em consonância com o entendimento firmado nesta Corte, deve ser ele mantido.
Dessa forma, incide a Súmula nº 568 do STJ.
(…)
Nessas condições, CONHEÇO EM PARTE do recurso especial e, nessa extensão, NEGO-LHE PROVIMENTO. (…) (REsp n. 1.979.096, Ministro Moura Ribeiro, DJe de 02/02/2022.)
Veja-se, apesar do contrato em questão estar sob a égide da Lei do Distrato, e em que pese se tratar de incorporação sob o regime de patrimônio de afetação, foi afastado o percentual de 50% de retenção sobre os valores pagos, aplicando-se o percentual de 25%.
Tal entendimento converge com o disposto na Súmula n° 543 do mesmo Tribunal:
Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.
Esse entendimento, contudo, ainda não está consolidado.
Também é possível encontrar outros julgados do STJ em sentido diverso, determinado a aplicação literal da Lei do Distrato, como ocorreu no Agravo em Recurso Especial n° 2.062.928/SP, conforme ementa a seguir:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2062928 – SP (2022/0026135-1)
DECISÃO
(…)
O entendimento firmado por esta Corte, por ocasião do julgamento do REsp 1.723.519/SP na Segunda Seção, é no sentido de que, na rescisão de contrato de compra e venda de imóvel, por desistência do comprador, anterior à Lei 13.786/2018, deve prevalecer o percentual de retenção pactuado desde que dentro do limite de 25% (vinte e cinco por cento), tal como definido no julgamento dos EAg 1.138.183/PE, por ser montante adequado e suficiente para indenizar o construtor das despesas gerais e do rompimento unilateral do contrato.
Ademais, restou consignado no voto condutor desse aresto que “(…)
a Lei 13.786/2018, suprindo a lacuna do direito positivo, e incorporando ao direito positivo diversos entendimentos e parâmetros já consagrados pelo STJ, adotou o percentual 25% da quantia paga como limite para a pena convencional em caso de distrato, podendo chegar a 50% quando a incorporação estiver sujeita ao regime de patrimônio de afetação (arts. 67-A, inciso I e §5º)”.
No caso em apreço o contrato foi realizado em Junho de 2019, ou seja, posterior a entrada em vigor da Lei n. 13.786/2018, que introduziu o art. 67- A, II, da Lei 4.591/1964 apontado como violado.
Não obstante, o aludido art. 67-A, II, da Lei 4.591/1964, prevê a possibilidade de a pena contratual ser estipulada em até 25% dos valores pagos em caso de rescisão ou resolução:
Art. 2º A Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 , passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 35-A, 43-A e 67-A: (…) “Art. 67-A .
Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: I – a integralidade da comissão de corretagem; II – a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. (…)
Sendo certo que, como alega o agravante, esse percentual pode ser estabelecido até o limite de 50% da quantia paga, quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, tratados nos arts. 31-A a 31-F da Lei n. 4.591/1964, como no caso dos autos.
Desse modo , estando o limite estabelecido na cláusula de devolução de valores pactuada entre as partes em conformidade com o estabelecido na lei, não há como declarar sua nulidade, ante a prevalência do princípio da pacta sunt servanda.
- Ante o exposto, conheço do agravo para dar provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença – que considerou válida a cláusula de retenção de 50% (cinquenta por cento) dos valores pagos -, inclusive quanto aos ônus sucumbenciais. (AREsp n. 2.062.928, Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 04/04/2022.)
Fato é que, embora a Lei do Distrato já esteja em vigor há mais de quatro anos, ainda se discute a sua aplicabilidade, especialmente em relação às penalidades em caso de desistência imotivada pelo comprador ou inadimplemento do preço.
Consequentemente, o Judiciário continua sendo frequentemente demandado para intervir em discussões sobre distratos a contratos de promessa de compra e venda firmados com incorporadoras ou loteados, não havendo, ainda, uma jurisprudência consolidada sobre o assunto.
Conclusão
Mesmo após a edição da Lei do Distrato, ainda paira um ar de incerteza sobre o que, de fato, deve ou não ser aplicado no âmbito dos contratos de compra e venda de imóveis firmados com incorporadoras e loteadoras.
A Lei do Distrato entrou em vigor há mais de cinco anos, mas os tribunais ainda discutem sua aplicabilidade, não havendo, ainda, uma jurisprudência consolidada sobre o tema.
Isso reforça a importância de ter um contrato bem ajustado, claro e objetivo, que pode assegurar que você e o seu negócio corram menos riscos em caso de desistência imotivada ou inadimplemento do comprador.
Assim, caso você e sua empresa necessitem de suporte para elaboração desse tipo de contrato, entre em contato conosco! Será um prazer ajudá-lo!
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