Sabemos, até mesmo a partir do senso comum, que os usos e costumes, muitas vezes, acabam tendo uma aplicação mais efetiva no cotidiano das pessoas e das empresas do que leis e regulamentos formais e que, como veremos, é o caso do AFAC. 

Aliás, não é sem razão que tal fato é contemplado, com pequenas variações, em normas gerais como o Decreto-Lei nº 4.657/1942 (a chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) e a Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional):

  • Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

  • Código Tributário Nacional

Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

(…)

III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; (…).

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:

(…)

II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (…).

Reconheceu no texto acima o famoso “quem cala consente”? Pois é. Presente em vários idiomas, essa máxima do já citado senso comum é tão forte entre nós que passou a figurar formalmente no mais importante diploma legal da legislação civil brasileira. 

Usos, costumes, práticas reiteradas…

Quer um outro exemplo de instituto moldado muito mais pela prática do que pelas regras escritas? Apresentamos a você o adiantamento para futuro aumento de capital, mais conhecido pela sigla AFAC.

A rigor, o AFAC é um mecanismo pelo qual acionistas (no caso de sociedades anônimas) ou quotistas (no caso de sociedades limitadas) transferem à pessoa jurídica recursos financeiros que, posteriormente, serão (ou deveriam ser) utilizados com a finalidade de aumentar o capital social.

Na prática, porém, o AFAC virou uma espécie de “curinga”, uma “mão na roda” para permitir aportes dos sócios às sociedades que eles integram.

Siga conosco para entender melhor o que é o AFAC e quais são as possíveis implicações do uso indiscriminado dessa figura.

Como o AFAC costuma ser utilizado na prática?

É muito comum que sócios recorram ao AFAC sempre que precisam “emprestar” dinheiro às suas empresas para suprir necessidades de caixa, sem considerar as implicações desse enquadramento pouco ortodoxo (para a angústia de contadores e tributaristas).

Se, em tese, esses “empréstimos” deveriam ser classificados como mútuos, o fato de estes atraírem tributação acabaram tornando o uso do AFAC atraente para o mercado.

Sim, nos termos da Lei 9.779/1999 e do Decreto nº 3.606/2007, o mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física é fato gerador do IOF (imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários), atraindo, também, o IRRF (imposto de renda retido na fonte) nos casos em que exista o pagamento de juros ao mutuante (conforme a Lei 8.981/1995, referida no art. 793 do vigente Regulamento do Imposto de Renda).

Assim, o fato de os mútuos de sócios para sociedades serem fato gerador do IOF fez com que, na prática, o que mais se veja sejam “adaptações” daquilo que as autoridades fiscais brasileiras consideram ser a forma pura de um AFAC.

O AFAC na interpretação da Receita Federal

E qual é essa forma pura de AFAC admitida pela Receita Federal?

Em uma daquelas situações curiosas e típicas do direito tributário brasileiro, os critérios para definir essa forma pura estão estabelecidos não em uma lei, e sim em um antigo ato interno do Fisco Federal, o Parecer Normativo do Coordenador do Sistema de Tributação nº 17, de 20/08/1984.

Tal Parecer determina que só haveria AFAC se o futuro aumento de capital ao qual uma determinada transferência de recursos financeiros se destina (ou deveria se destinar) ocorre:

  • no primeiro ato formal registrado pela sociedade após o recebimento do aporte; ou
  • em até 120 (cento e vinte) dias contados a partir do encerramento do período base em que a sociedade tenha recebido os recursos financeiros caso não se registre nenhum ato formal dela antes disso.

Além disso, na visão clássica do Fisco Federal, refletida também na Instrução Normativa SRF nº 127/1988, para que uma determinada operação possa ser classificada como AFAC, e não como mútuo, ela precisa respeitar 3 (três) condições básicas:

• a conversão dos recursos em aumento do capital social deve ser irrevogável e irretratável;

• o adiantamento deve estar na moeda funcional da entidade (no caso, em Reais) e não pode prever indexação; e

• deve ser previamente estabelecida a quantidade de ações/quotas em que o adiantamento será convertido.

Ocorre que nem mesmo alguns órgãos normativos, como é o caso do Conselho Federal de Contabilidade, adotam entendimento tão restritivo quanto o da Receita Federal.

É o que se vê, por exemplo, na Resolução nº 1.159/2009, que aprova o Comunicado Técnico CT 01 e admite a possibilidade de devolução dos recursos aportados sob a forma de AFAC (o que afastaria os requisitos de irrevogabilidade e irretratabilidade), ao enunciar:

Os adiantamentos para futuros aumentos de capital realizados sem que haja a possibilidade de sua devolução devem ser registrados no Patrimônio Líquido, após a conta de capital social. Caso haja qualquer possibilidade de sua devolução, devem ser registrados no Passivo Não Circulante.

Evidentemente, a Receita Federal tende a não admitir como AFAC qualquer operação que não atenda a uma classificação “ortodoxas” do instituto. Para ilustrar, confira-se esta decisão da Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Salvador/BA:

LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. DECADÊNCIA. Aplica-se a regra do § 4º do artigo 150 do Código Tributário Nacional – CTN na hipótese em que houve pagamento antecipado do imposto, ainda que parcial, e a do artigo 173, inciso I do CTN quando não houve pagamento. ADIANTAMENTO PARA FUTURO AUMENTO DE CAPITAL. OPERAÇÃO DE MÚTUO. Para que os recursos aportados em empresa controlada a título de Adiantamento para Futuro Aumento de Capital – AFAC não configurassem uma operação de mútuo, o aumento de capital deveria ter sido realizado por ocasião da primeira alteração contratual da sociedade investida que ocorresse imediatamente após o recebimento dos recursos financeiros ou, não ocorrendo tal alteração contratual, no prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias contados a partir do encerramento do período-base em que a investida recebeu os recursos financeiros. Assim não ocorrendo, resta caracterizada a operação de mútuo, sujeita à incidência do IOF. (Acórdão nº 15-21537, de 30/10/2009, julgado pela 4ª Turma da Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Salvador/BA)

Em outras palavras, para o Fisco Federal, se um sócio transfere, a título de AFAC, recursos para uma sociedade da qual participe, tais recursos deveriam ser convertidos em aumento de capital:

  • na primeira alteração contratual da sociedade que venha a ser registrada na Junta Comercial após tal transferência; ou
  • nos primeiros 4 (quatro) meses do ano seguinte àquele em que os recursos tenham sido transferidos, caso, nesse intervalo de tempo, não tenha sido registrada nenhuma alteração contratual.

Do contrário, terá havido um mútuo sem o respectivo recolhimento do IOF, e não um AFAC, gerando um potencial passivo fiscal.

Materialidade da operação e jurisprudência administrativa ao longo dos anos

De uma maneira mais sofisticada, pode-se afirmar que, historicamente, para definir se uma determinada operação deve ser classificada como AFAC ou como mútuo, a Receita Federal avalia a materialidade dela, e não apenas os seus aspectos formais.

Ou seja, é preciso demonstrar que a referida transferência de recursos do sócio para a sociedade efetivamente se destina a um posterior aumento de capital.

Isso é o que se percebe, por amostragem, neste trecho de uma decisão do então Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda (hoje Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF), cujos fundamentos foram replicados incontáveis vezes em julgados semelhantes:

A acusação fiscal considerou os encargos financeiros glosados como não necessários às atividades da empresa, pelo fato da ora recorrente ter cedido capital às empresas coligadas a título de adiantamento para futuro aumento de capital, sem a cobrança de qualquer encargo financeiro, ao passo que tomou empréstimos externos junto a instituições financeiras.

Dessa forma, a fiscalização considerou parte dos encargos financeiros, na proporção dos valores cedidos, indedutíveis, por tratar-se de mero ato de liberalidade, deixando de atender os requisitos de normalidade, usualidade e necessidade.

No pertinente a repasse de empréstimos, é jurisprudência pacífica deste colegiado e das demais câmaras do Primeiro Conselho de Contribuintes, de que as despesas financeiras relativas a valores que são repassados a empresas ligadas não se afiguram como despesas necessárias às atividades da empresa, quando não há cobrança de encargos financeiros equivalentes aos empréstimos obtidos pela repassadora.

Entretanto, no caso, trata-se de adiantamento para futuro aumento de capital, o que impõe a análise da efetividade desse adiantamento, bem como sua posterior integralização ao capital, e os fatores que determinaram os lançamentos contábeis de adiantamento para futuro aumento de capital. (Processo nº 13840.000061/2003-88, julgado pela 3 ª Câmara do 1º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda)

Com efeito, para quem examinar a jurisprudência administrativa federal das últimas décadas, o mais natural será concluir que só pode ser considerado um AFAC puro, não tributável, aquela transferência de recursos que:

a) seja irrevogável e irretratável;

b) seja feita em Reais, sem nenhum tipo de indexação;

c) já preveja a quantidade de ações/quotas em que o aumento de capital será convertido; e

d) resulte em aumento de capital que seja formalizado no primeiro ato societário registrado na Junta Comercial após o recebimento dos recursos ou que seja formalizado nos primeiros 4 (quatro) meses do ano seguinte em que o recebimento dos recursos tenha ocorrido.

Vitória dos contribuintes

Porém, em julgamento recente, em que houve voto de desempate e que representou a 1ª vitória dos contribuintes sobre o tema na instância máxima do CARF, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais entendeu que a demora na capitalização de um AFAC não descaracteriza a operação, afastando a classificação desta como mútuo e, consequentemente, a incidência de IOF.

No caso julgado pelo CARF, o contribuinte celebrara um contrato de AFAC com a sociedade anônima da qual ele era acionista, transferindo dinheiro a ela a esse título, mas o correspondente aumento de capital só veio a ocorrer após dois anos da realização do aporte.

No entendimento do Fisco, o decurso desse longo prazo, sem qualquer justificativa, teria caracterizado uma operação como mútuo, atraindo a incidência do IOF nos termos do artigo 13 da Lei 9.779/1999.

O Conselheiro Relator, cujo voto foi vencido, sustentou que o Fisco não poderia ficar inerte, aguardando indefinidamente no tempo pela efetivação ou não do aumento do capital social.

A Conselheira Tatiana Midori Migiyama, todavia, abriu divergência e, em seu voto, argumentou que não haveria limite legal expresso para a efetivação do aumento de capital social, uma vez que tanto o Parecer Normativo do Coordenador do Sistema de Tributação nº 17, de 20/08/1984 quanto a Instrução Normativa SRF nº 127/1988 já não seriam válidos.

Logo, ainda que transcorridos dois anos entre o adiantamento feito pelo sócio e o aumento de capital, a operação não poderia ser caracterizada como mútuo, afastando-se a incidência do IOF.

De fato, como já referimos neste texto, as exigências comumente impostas pela Receita Federal em relação ao AFAC não têm um amparo legal firme, sendo que no direito tributário brasileiro o princípio da legalidade estrita tem grande relevância.

O que isso quer dizer? Que somente uma lei em sentido formal, votada pelo Poder Legislativo, pode estabelecer os elementos básicos de um determinado tipo de tributação.

No mais, a legalidade estrita em matéria tributária é verdadeira garantia fundamental prevista no artigo 150, I, da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (…).

O artigo 97 do Código de Tributário Nacional e, de certa forma, também o artigo 99, que visam a regulamentar a legalidade, reforçam a necessidade de lei em sentido formal para a definição dos caracteres essenciais para a cobrança de tributos:

Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;

II – a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;

III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;

IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;

V – a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;

VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.

§ 1º Equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.

§ 2º Não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo.

Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.

Art. 99. O conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei.

Nesse contexto, atos como o Parecer Normativo do Coordenador do Sistema de Tributação nº 17, de 20/08/1984 e a Instrução Normativa SRF nº 127/1988  podem ser questionados por ausência de base legal que lhes dê sustentação.

Conclusão

A fragilidade de base legal a amparar a posição do Fisco Federal, somada ao fato de o mercado haver consagrado, na prática, o uso do AFAC com maior liberdade, culminando com o julgado favorável aos contribuintes recentemente proferido pela 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, tende a tornar ainda mais usual que o instituto venha a ser largamente utilizado para organizar e otimizar a vida financeira de empresas.

Afinal, continua sendo muito mais barato e fácil recorrer a um AFAC do que a um empréstimo bancário ou mesmo a um empréstimo de sócios.

Ainda assim, para garantir total segurança jurídica, o cenário ideal para os sócios, em caso de necessidade de aportar recursos no curto/médio prazo à sociedade, é a elaboração de um contrato de AFAC que atenda aos requisitos impostos pela Receita Federal, com a efetiva realização posterior do aumento do capital social e formalização deste na alteração contratual seguinte ao aporte ou dentro dos primeiros 120 (cento e vinte) dias do próximo exercício.

Se isso não for possível ou viável, você, por ter lido este artigo, já saberá quais são as perspectivas e o que esperar em uma eventual discussão!

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