Hoje trataremos de um assunto um pouco diferente em nosso artigo. Pode parecer, em um primeiro momento, até um pouco complexo ou demasiadamente técnico. Porém, suas repercussões são tão importantes para todo o ordenamento jurídico e, por conseguinte, para vida de cada um de nós, que não poderíamos deixar de tecer nossas considerações sobre o assunto.

O Direito trata do conjunto de normas e princípios que busca reger a vida em sociedade. Esse conjunto de regras está inserido em um sistema de governo estruturado, que possui uma série de órgãos e entidades, cada qual com sua função para que o Estado cumpra com seu papel.

Pela Constituição de 1988, nossa Carta Magna, o regime político adotado foi de um Estado Democrático de Direito, o que significa dizer, de forma simplória, que estamos estruturados de forma que a soberania popular (direta ou representativa) seja o cerne de todo o sistema.

Ainda, o texto constitucional prevê uma série de direitos e garantias fundamentais, principalmente em seu famoso art. 5º, que deveria, a priori, ser assegurado a todo e qualquer cidadão brasileiro.

A Constituição, portanto, é o diploma normativo mais importante de um Estado e por essa razão, merece a devida proteção.

Nesse contexto, volta e meia recebemos alguma notícia de que “o Supremo Tribunal Federal irá decidir, irá julgar…”, sem ter ideia ao certo do que se trate esse tão comentado Tribunal.

No âmbito do Estado Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal ou STF é o guardião da Constituição. É ele o órgão público responsável por interpretar a matéria constitucional e deliberar sobre eventuais incidentes que tratam da (in)constitucionalidade de leis e atos inferiores (infraconstitucionais).

Assim, cumpridos os requisitos intrínsecos e extrínsecos, em caso de controvérsia acerca da constitucionalidade de um ato, ou seja, se aquela determinada ação ou lei emanado pelo poder público possui validade perante o texto constitucional, é o STF quem dirá a “última palavra”.

Na estrutura do Poder Judiciário, é o STF o órgão que possui competência para rever os atos de todo e qualquer Tribunal, desde que a controvérsia seja sobre constitucionalidade.

Em resumo, vimos o quanto o STF é importante para o Estado e para que o texto constitucional seja fielmente cumprido.

Porém, existem algumas intempéries nesse caminho.

Ao contrário da maioria dos cargos públicos, que pela Constituição dependem de aprovação em um concurso público prévio, os cargos do STF são preenchidos mediante nomeação do Presidente da República, após aprovação por maioria absoluta do Senado Federal.

Portanto, isso dá a composição do STF um caráter eminentemente político, o que pode interferir na imparcialidade com a qual o Judiciário precisa se pautar em suas decisões.

Feita esta não tão breve introdução, mas necessária para a compreensão do tema, é possível compreender o quanto as decisões do STF são relevantes para todo o ordenamento jurídico.

Ainda que pareça ser algo distante, as decisões tomadas pelos Ministros têm o poder de influenciar diretamente na vida de cada cidadão.

Isso porque, a depender da sistemática em que a decisão for proferida, ela terá validade para todos, ainda que não sejam partes no processo.

Esse é o chamado efeito erga omnes, que ocorre quando uma decisão prolatada em um processo repercute em todos os outros casos que tramitem sobre o assunto e, ainda, nos que sequer foram judicializados.

Essas decisões possuem o condão de formar o chamado precedente, que é um padrão decisório que deve ser observado por todos os Tribunais. Então, se o STF decidir no sentido “A”, todos os Tribunais deverão decidir no mesmo sentido.

Porém, nem todas as decisões possuem essa observância obrigatória. Isso somente ocorrerá se o recurso for julgado sob a sistemática da repercussão geral ou em controle concentrado de constitucionalidade (Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)).

Atualmente, todo Recurso Extraordinário (RE – utilizado para impugnar decisões que ofendam à Constituição) deve possuir Repercussão Geral. Então, a princípio, todas as decisões proferidas pelo STF formarão precedentes.

Nesse ponto, estão os Temas de Repercussão Geral n° 881 e 885, que versam sobre matéria tributária, que são objeto da nossa discussão de hoje.

Os temas n° 881 e 885 do STF

O Tema n° 881, extraído do RE 949297, de relatoria do Ministro Edson Facchin, possui a seguinte tese a ser julgada:

Tema 881 – Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.

Já o Tema n° 885, do RE 955927, de relatoria do Ministro Luis Roberto Barroso, prevê:

Tema 885 – Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.

Ambos os temas estão afetados para julgamento em conjunto desde 2016. Em maio do corrente ano o julgamento virtual se iniciou.

Enquanto o Tema n° 881 trata da possibilidade de aplicação automática dos efeitos das decisões tomadas em controle concentrado (ADI, ADC, ADPF), o Tema n° 885 trata da mesma possibilidade, mas em controle difuso (RE).

Os Recursos Extraordinários (949297 e 955927) tratam da possibilidade da retomada de cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Isso aconteceu porque algumas empresas, na década de 90, conseguiram decisões favoráveis para deixar de recolher o tributo, sob a alegação de inconstitucionalidade da Lei n° 7.689, de 15 de dezembro de 1988, que instituiu o imposto.

O fundamento para a alegada inconstitucionalidade era de que a Contribuição deveria ser instituída por Lei Complementar e não por Lei Ordinária, como o foi.

Contudo, em 2007 o STF julgou a ADI n° 15/2007, oportunidade em que declarou a constitucionalidade da cobrança da CSLL.

Ocorre que as empresas que possuíam decisões favoráveis pelo não recolhimento do tributo continuaram sem efetuar os pagamentos, em prestígio ao instituto da coisa julgada.

Tal premissa está em conformidade com o então entendimento adotado pelo STF, corroborado pelo Tema n° 733:

A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). [Tese definida no RE 730.462, rel. min. Teori Zavascki, P, j. 28-5-2015, DJE 177 de 9-9-2015, Tema 733.]

Porém, se de um lado há a figura do contribuinte com uma decisão anterior e individual a seu favor, há, do outro, a figura do Fisco com decisão posterior e que deve ser observada por todos.

O direito de alguns contribuintes em não realizar o recolhimento da CSLL os coloca em situação de privilégio em relação aos demais. Mas, eles não poderão ser penalizados pela diligência em ter perquirido, judicialmente, seu direito à época.

Portanto, essa é a controvérsia principal desses recursos:

Pode uma decisão posterior e com efeito erga omnes, que seja contrária ao contribuinte, modificar uma decisão anterior e benéfica ao contribuinte, sem que haja uma ação rescisória ou revisional?

Até o momento, pelo julgamento do STF (ainda não finalizado), sim.

Façamos agora algumas considerações acerca da coisa julgada para que se entenda a gravidade dessa decisão.

Coisa julgada

A coisa julgada é um instituto processual que garante a segurança jurídica do ordenamento a partir da estabilidade das decisões.

Tanto em esfera administrativa quanto judicial, quando proferida uma decisão que não mais é suscetível de recurso, estamos diante da chamada coisa julgada.

Ocorre que as decisões tomadas em esfera administrativa poderão ser revistas pelo Poder Judiciário, a quem cumpre a função típica de julgar e detém o monopólio da jurisdição.

Isso da um caráter imutável à decisão, mas também a segurança de que aquela decisão não será revertida de forma automática e arbitrária, podendo ser executada.

A coisa julgada somente será “desfeita” por meio da chamada ação rescisória, em situações excepcionais e no prazo de até 2 (dois) anos. Em algumas situações, especialmente as de trato continuado, é possível uma flexibilização da coisa julgada por uma ação revisional (p. ex, alimentos).

Na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-Lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942), já havia a previsão de respeito à coisa julgada:

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.       

Na Constituição de 1988 a coisa julgada é elevada a direito e garantia fundamental, elencada no art. 5°:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

Sobre o tema dispõe o Código de Processo Civil:

Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em função da Lei à luz da Constituição (art. 5º, II), pode uma decisão judicial retirar a força da coisa julgada e, ainda, do direito adquirido do contribuinte?

Veja-se que, ainda, o CPC define que:

Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

Já dissemos aqui que as decisões do STF, a depender da sistemática de julgamento, deverão ser observadas por todos os demais Tribunais – e até este ponto, tudo bem, afinal, é importante e necessário que controvérsias sejam pacificadas, para evitar decisões conflitantes, o que também gera insegurança jurídica.

MAS, autorizar que uma decisão proferida posteriormente, após o trânsito em julgado de outras questões já decididas, possa, automaticamente, rescindir decisões anteriores, sem que haja o ajuizamento de ações rescisórias, é esvaziar o conteúdo da ação rescisória e da coisa julgada de uma única vez.

Até a última semana, o STF tinha formado maioria pela interrupção automática dos efeitos futuros da coisa julgada em relações tributárias de trato sucessivo.

Por exemplo, no caso concreto, em que se trata da CSLL, o recolhimento possui a periodicidade mensal ou trimestral, a depender do regime tributário.

Então se um contribuinte possuía uma decisão anterior que julgava pela inconstitucionalidade do tributo, ele, a princípio, estaria desobrigado de efetuar qualquer recolhimento posterior por aquele fato gerador.

Com a decisão do STF, caso haja pronunciamento do Supremo posterior pela constitucionalidade do tributo, aquela decisão que já fez coisa julgada em sentido diverso, estaria automaticamente desconstituída, passando o contribuinte a ser obrigado a recolher o tributo.

No RE 949.297, já havia maioria (6×0) pela desconstituição automática da coisa julgada, sem necessidade de ajuizamento de ação rescisória ou revisional.

A tese proposta pelo Ministro Relator, Edson Fachin, prevê:

A eficácia temporal de coisa julgada material derivada de relação tributária de trato continuado possui condição resolutiva que se implementa com a publicação de ata de ulterior julgamento realizado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, quando os comandos decisionais sejam opostos, observadas as regras constitucionais da irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, de acordo com a espécie tributária em questão.”

Portanto, a decisão individual em sentido diverso (pró-contribuinte) estaria automaticamente desfeita com a publicação de acórdão do STF em sentido pró-Fisco, desde que respeitados os princípios da irretroatividade, anterioridade anual e nonagesimal, a depender do tipo de tributo do caso concreto.

No julgamento do RE 955.927, de relatoria do Ministro Luis Roberto Barroso, cujo placar de votação se encontrava em 5×0 (ainda sem maioria), a tese sugerida era a seguinte:

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”

Em igual sentido, as decisões do STF proferidas em controle difuso de constitucionalidade, desde que dotadas de repercussão geral, também quebrariam automaticamente a coisa julgada anterior. Segundo a tese, a irretroatividade e anterioridade deveriam ser respeitadas, já que a retomada da cobrança de um tributo se assemelha à sua instituição. Neste ponto, o Ministro Gilmar Mendes divergiu, entendendo pela desnecessidade da aplicação da anterioridade anual e nonagesimal.

Não há maioria formada acerca da modulação dos efeitos dessa decisão: se ela passa a valer desde sua publicação ou se haverá algum prazo para sua exigibilidade.

No último dia 22/11, o Ministro Edson Fachin, pediu o destaque e interrompeu os julgamentos. Assim, a sessão que vinha ocorrendo de forma virtual, passará para julgamento no plenário de forma presencial. Ainda não há data estimada para sua conclusão.

Não se nega a importância do STF para a própria existência do Estado Democrático de Direito. Mas até que ponto o ativismo judicial não fere às premissas do próprio Estado? Em prol do Fisco ou de um possível privilégio de certas empresas, é válido que se “quebre” toda a segurança jurídica de um sistema?

Aguardamos ansiosamente – e com certo receio – pelas cenas dos próximos capítulos desse julgado tão importante para todo o ordenamento.

Código de Contribuintes

Em contrapartida à decisão que pode gerar efeitos catastróficos ao sistema tributário, trazemos um certo “quê” de esperança ao contribuinte: a edição do Código de Defesa dos Contribuintes.

De acordo com a Câmara do Deputados:

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 17/22 institui um código de defesa dos contribuintes, com regras gerais sobre os direitos e garantias do contribuinte, e deveres da Fazenda Pública (da União, estados, Distrito Federal e municípios). A proposta tramita na Câmara dos Deputados.

O Projeto já foi aprovado pela Câmara e foi enviado para aprovação do Senado Federal. Nele, há a previsão de descontos para o pagamento dos tributos, de modo a incentivar o cumprimento das obrigações de forma regular pelo contribuinte. Além disso, regras sobre os processos administrativos tributários serão fixadas.

Outro ponto importante é a obrigação de modulação dos efeitos das decisões pelo STF. Atualmente, ela é facultativa pelo Supremo, o que passará a ser um dever do Tribunal com a promulgação do Código.

Portanto, ainda que existam riscos à segurança jurídica com a decisão do STF dos Temas n° 881 e 885, o Código de Defesa dos Contribuintes vem para amenizar esses efeitos e tantos outros, demasiadamente prejudiciais, os quais os contribuintes são submetidos constantemente.

Conclusão

Como dito, ainda que o caso concreto objeto de julgamento dos recursos extraordinários verse sobre a CSLL, a decisão proferida pelo STF terá o condão de afetar outras teses tributárias – e até mesmo ser aplicada de forma análoga a casos que não versem sobre direito tributário, e sim sobre outras áreas do direito.

Além disso, essa flexibilização à coisa julgada não nos parece, com o devido respeito, a medida mais adequada para se garantir uma segurança do sistema judiciário.

Se há uma mudança de entendimento, o que está em consonância com a própria mutabilidade e avanço social, que daquele momento em diante esses efeitos sejam observados.

No entanto, alterar decisões já estabilizadas, que sequer poderiam ser revertidas por meio de ação rescisória, é dar uma verdadeira licença para modificar toda e qualquer decisão.

E se assim o for, não mais falaremos em coisa julgada, já que tudo poderá ser desfeito, mesmo após o prazo legal para tanto. Ademais, a ação rescisória perderá o seu sentido de ser.

O presente texto não busca esgotar o tema, mas apenas tecer considerações e nossas sinceras preocupações sobre essa decisão tão relevante.

Esperamos que essa leitura o tenha auxiliado a entender um pouco mais sobre essa controvérsia judicial.

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*Imagem de Getty Images, no Canva Pro.

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